O 25 de Abril e os seus capitães

A nossa democracia é imperfeita? Pois é, como todas as outras. Mas querer “aperfeiçoar” é meio caminho para acabar com ela.

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1. O verdadeiro significado do 25 de Abril é muito simples: restituiu a cada um de nós a liberdade, incluindo a liberdade de escolher o que fazer dela. Os capitães de Abril merecem o nosso respeito porque derrubaram um regime autoritário e opressivo que, durante 48 anos, manteve o país na miséria moral e material, impediu qualquer espécie de liberdade, perseguiu, prendeu ou forçou ao exílio os que o combatiam.

As motivações dos militares foram várias. Uns, como Salgueiro Maia, agiram com uma coragem e um dever de consciência exemplares para acabar com “o estado a que isto chegou”. Outros, talvez a maioria, estavam fartos de uma guerra em nome da defesa de um “império” que já estava fora do seu tempo. Outros ainda tinham uma consciência política mais profunda, sobretudo aqueles que mantinham uma ligação militante ao Partido Comunista. É bom também não esquecer que se sentiram bastante “confortados” pela “dissensão” do general Spínola, tornada pública com o seu livro Portugal e o Futuro. Spínola, que não era um democrata, como alguns dos capitães de Abril também não eram, percebeu a inutilidade de uma guerra que estava condenada à derrota e que impedia qualquer evolução do regime.

Os quase dois anos seguintes foram os anos de combate pelo destino a dar a essa liberdade. Anos muito duros, convém recordar. Esse combate reflectiu-se no Movimento das Forças Armadas. A parte mais radical, ligada ao Partido Comunista e a alguns movimentos de extrema-esquerda, conseguiu impor-se durante os primeiros tempos. Os tempos dos saneamentos selvagens no Estado e nas empresas, das nacionalizações, da ocupação dos jornais (também com os respectivos saneamentos políticos), dos mandatos em branco do Copcon. Outros, mais moderados, defendiam o chamado “regime peruano”, numa visão terceiro-mundista que se afastaria das imperfeições das democracias capitalistas ocidentais e manteria a natureza “revolucionária” do novo regime, reservando aos militares o papel de garante supremo. Outros ainda perceberam que o rumo da revolução teria de levar em conta os partidos democráticos nascentes e os seus programas políticos, que defendiam uma democracia parlamentar, europeia e ocidental. Foram decisivos no 25 de Novembro, mas apenas depois da realização das eleições para a Constituinte, a 25 de Abril de 1975, que uma boa parte do MFA ainda tentou adiar, alegando a falta de preparação dos portugueses (o velho argumento de Salazar) e acabando por apelar (sem sucesso) ao voto em branco. Ao contrário das expectativas (não havia sondagens credíveis nessa altura), as primeiras eleições livres deram ao PS de Mário Soares e ao PSD de Sá Carneiro uma votação largamente maioritária (38 e 26 por cento, respectivamente) e um triste resultado ao PCP (14 por cento). Cunhal e a parte do MFA que controlava rejeitaram o veredicto das urnas, argumentando com o veredicto das ruas. Mário Soares, que é o verdadeiro pai da nossa democracia liberal, ainda teve de mostrar que também conseguia vencer esse combate, com a manifestação da Alameda, em Lisboa.

O 25 de Novembro pôs fim a este período turbulento e perigoso. Cunhal soube recuar a tempo, não sem antes ter garantido a vitória da União Soviética nas colónias. As eleições legislativas de 1976 confirmaram, sem margem para dúvida, qual era a vontade de uma imensa maioria de portugueses. Seguimos o nosso destino democrático e europeu. A Europa passou a ser uma espécie de “programa comum” da democracia. Soares provou a Kissinger que não seria o Kerenski da revolução portuguesa nem precisava que lhe arranjasse um lugar numa universidade americana. Obteve o apoio da Alemanha de Willy Brandt e Helmut Schmidt, da Suécia de Olof Palme ou do Reino Unido de James Callaghan para garantir que o caminho da democracia não sofreria qualquer revés e para evitar uma situação económica muito difícil. A Europa continuava connosco e era o nosso destino.

A primeira revisão constitucional acabou com a tutela militar do Conselho da Revolução. Seria preciso chegar à primeira volta das eleições presidenciais de 1986 para clarificar definitivamente a natureza do centro-esquerda. O PCP e Ramalho Eanes (com o apoio de algumas franjas socialistas) viram nestas eleições uma oportunidade para derrotar definitivamente Mário Soares. Encontraram o melhor candidato possível: Francisco Salgado Zenha, o eterno número dois do PS. Soares chefiara um Governo do bloco central que aplicara durante três anos uma dose brutal de austeridade, imposta pelo FMI. A sua impopularidade era total. Maria de Lourdes Pintasilgo, preterida por Eanes, apresentara a sua candidatura em nome de uma esquerda romântica que queria “aprofundar” a democracia. A direita tinha um só candidato: Freitas do Amaral. Sabemos o desfecho. O PS seria um partido social-democrata europeu e moderno. O mundo deu muitas voltas. Acabou a Guerra Fria e, com ela, a União Soviética. A Europa alargou-se à dimensão do continente. Com crise ou sem crise, Portugal é hoje um país infinitamente mais livre, mais desenvolvido e mais justo. Com um pequeno problema.

2. Quarenta anos depois, há ainda capitães de Abril que se vêem como “vigilantes” da democracia e portadores de direitos especiais sobre ela. Foram sempre convidados para a celebração parlamentar da revolução. Tiveram o seu palco na tradicional manifestação da Avenida da Liberdade. Têm o direito à palavra e à actividade política como qualquer outro cidadão. A que propósito e com que legitimidade Vasco Lourenço quer discursar nas cerimónias do Parlamento? Ontem admitia ao i a tentação de se candidatar às presidenciais, o que é perfeitamente legítimo. Na mesma entrevista culpa os partidos pela crise em que estamos mergulhados e admite que o seu desejo era uma democracia representativa misturada com uma boa dose de democracia de base, seja lá o que isto quer dizer. Perdeu a noção do tempo e das coisas. Continua a pensar que tem uma espécie de droit de regard sobre as decisões que o país toma. Esse estatuto não existe em democracia, onde a lei é a regra e onde a única fonte de legitimidade são os votos dos cidadãos. Será muito difícil de compreender estas verdades básicas? Assunção Esteves disse-lhe aquilo que tinha exactamente a dizer. Se dissesse o contrário é que nos deveríamos preocupar. A revolta contra o Governo, contra a austeridade, contra as injustiças pode ser manifestada pacificamente todos os dias. O debate sobre o destino do país pode ser feito em qualquer lugar. Mas o actual Governo, seja qual for o juízo que façamos dele, tem a única legitimidade que existe em democracia, que é a do voto. Que algumas pessoas ainda achem que são donas da revolução que nos restituiu a liberdade é triste, embora não chegue a ser perigoso.

A cultura democrática portuguesa mantém especificidades próprias que, por vezes, nos deixam de boca aberta. Não é só esta coisa de dizer que os capitães de Abril ganharam um direito que mais ninguém tem. A direita (e alguma esquerda) não esconde a sua admiração por Álvaro Cunhal e pela sua alegada coerência, sem se deter por um minuto a pensar que os seus pescocinhos ficariam em risco se alguma vez ele tivesse levado a cabo os seus objectivos. Agora, querem-nos convencer de que, 40 anos depois da revolução e quando o mundo já deu várias voltas, temos de nos curvar aos capitães de Abril, para merecermos o nosso direito à liberdade. Tenho pena, porque Vasco Lourenço esteve sempre do lado certo durante o PREC. Gostaria muito que ele pensasse que fez apenas aquilo que a sua consciência lhe ditou. Como, aliás, muita gente que lutou contra o fascismo anos a fio e pagou por isso um preço muito alto. A nossa democracia é imperfeita? Pois é, como todas as outras. Mas querer “aperfeiçoar” é meio caminho para acabar com ela.

Jornalista

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