Navegar é preciso, protestar também

Este é um artigo sobre a necessidade fundamental de protestar na Era da Informação, pois o protesto está hoje para a política assim como a inovação está para a economia. Ou seja, sem inovação a economia não cresce, sem protesto a política é incapaz de formular soluções.

Gene Sharp, professor emérito de Ciência Política da Universidade de Massachusetts, EUA, publicou há algumas décadas uma lista de 198 tipos de protestos pacíficos que incluem as seguintes categorias e actos: Actos Públicos Simbólicos: "(...)18. Mostra de bandeiras e cores simbólicas; 19. Uso de símbolos; 20. Oração e prece; 21. Entrega de objectos simbólicos; 22. Despir como protesto; 23. Destruição de propriedade própria; 24. Luzes simbólicas; 25. Mostra de retratos; 26. Pintar como protesto; 27. Novos sinais e nomes; 28. Sons simbólicos; 29. Reclamações simbólicas; 30. Gestos rudes. Pressões Sobre Indivíduos 31. "Assombração" de entidades oficiais; 32. Insultos a entidades oficiais; 33. Confraternização; 34. Vigílias (...)". O protesto é, portanto, muito mais complexo, quer na diversidade de formas quer no contexto das suas práticas, do que aquilo que a nossa convivência episódica com ele nos deixa antever.  No entanto, o seu papel vai para além do que na maior parte das vezes lhe é conferido, o de escape social e paliativo para a não profusão de práticas violentas.

Como se lê no titulo deste artigo – um remix dos dizeres de Fernando Pessoa – hoje em dia navegar na Internet está na base de todas as dimensões do exercício do poder, seja ele cultural, económico ou político. Pois é aí que sempre se começa a responder à pergunta: E agora, o que fazer? Esta é a pergunta que se faz quando se tem um qualquer problema, seja ele na gestão de uma empresa, na condução de países ou nas nossas vidas pessoais – a título de curiosidade, porque um dos leitores do PÚBLICO o referiu num comentário a um artigo meu, “o que fazer?” é também o título de um livro com 111 anos escrito por Lenine, mas isso não é agora para aqui chamado. 

Normalmente poderíamos pensar que, após colocar a pergunta a nós mesmos, o melhor seria conversar primeiro com os que nos são mais próximos e tal continua a ser verdade. Só que hoje, com a Internet, o mais próximo pode mesmo não ser aquele que está connosco na direcção da empresa, ao nosso lado no Governo, na nossa família ou no nosso círculo de amigos, mas sim aquele que está numa rede social ou aquele que deixou um testemunho ou uma ideia numa página ou num blogue.

Os problemas que nos extravasam individualmente e influenciam o nosso destino colectivo, tendem a entrar nas nossas vidas através da comunicação social e dos protestos que se geram em torno desses problemas. Mas de seguida, pelo menos para os mais de 50% de portugueses que usam a Internet, o próximo passo para responder ao que fazer para lidar com o que foi definido como "problema", pode bem passar por ler primeiro algo que alguém escreveu, depois querermos aproximar-nos dessa pessoa e do grupo de pessoas que partilham textos, imagens e sons sobre essa temática, tornarmo-nos seus amigos de rede, estar atento à partilha de ideias ou de acções e algures no caminho chegar a formular uma solução que para nós faz sentido para lidar com o problema.

O que aqui argumento, é que se a inovação para as empresas é cada vez mais orquestrada e iniciada por aquilo que Eric Von Hippel, professor do MIT, denomina Lead Users, ou seja os utilizadores que criam soluções para que as empresas depois as apropriem, também a capacidade de na política os seus actores (no quadro dos partidos e nos "quadros" dos líderes de opinião) encontrarem soluções para os problemas que assolam hoje os países e as populações só pode ser encontrada na evolução dos protestos e já não apenas em reuniões de trabalho ou congressos – ou seja o pensamento colectivo em rede, promovido pela autonomia individual, é hoje a ferramenta base para abordar os problemas na sociedade em rede.

Os protestos são, por definição, actos e como tal podem parecer desprovidos de propostas. Mas, porque a realidade que vivemos tende sempre a criar viés na nossa apreciação (pois enquanto humanos classificamos os que nos rodeiam em quem gostamos e em quem desgostamos), a exemplificação é sempre mais fácil quando nos colocamos noutro ambiente. Barcelona, bairro @22, mês de Outubro de 2012, um encontro com várias pessoas que estiveram, pela sua persistência e competência no uso das redes sociais, na origem da experimentação que levou ao movimento que veio, mais tarde, a ser designado pelos jornais como "Os Indignados" e que culminou nas acampadas na Praça da Catalunha, Portas do Sol e centenas de outras praças em Espanha e fora dela. Nesse encontro aprendi muito sobre o processo de génese do movimento 15M e como, de Espanha, chegou até ao movimento Occupy nos Estados Unidos. Aquilo que aí compreendi é que, por um lado, os nossos estereótipos baseados na primazia dos partidos políticos na acção nos impedem de compreender um movimento que agrega militantes partidários e ateístas partidários – para dizer o mínimo da opinião de alguns sobre a política organizada. Por outro lado, o nosso hábito de achar que tudo tem de desembocar em organizações estruturadas com lideranças hierarquizadas também nos impede de pensar que movimentos aparentemente desorganizados podem eficazmente atingir soluções que os mais organizados não conseguem. E por último, que movimentos e partidos não devem nem ser percebidos como extensões de uns e outros, nem competidores por um mesmo espaço, porque na realidade estão em redes diferentes que ora se conectam quando há objectivos comuns ora se desconectam quando são adversários comuns e, portanto, apenas possuem lealdades e oposições circunstanciais entre si.

Mas mais importante, aprendi que o protesto pode mudar aquilo que os partidos não podem ou não conseguem mudar, oferecendo soluções para problemas concretos. O caso dos despejos de famílias e pessoas endividadas e do movimento contra tal, em Espanha, é um exemplo disso. A Plataforma de Afectados por la Hipoteca (PAH) conseguiu que o Governo Espanhol mudasse o sentido de voto e admitisse a Iniciativa Legislativa Popular que promove a quitação da divida por entrega do imóvel. Demorou quatro anos a trajectória da PAH, um movimento de cidadãos estruturado em assembleias regulares e mobilizações que utiliza uma fórmula simples, transformar os afectados pelas hipotecas em activistas – tendo conseguido parar mais de 500 despejos e colocar o problema do sobrendividamento na agenda. Hoje em dia basta um post no Facebook para dezenas de pessoas se deslocarem até um imóvel e impedirem a polícia e os bombeiros de realizar um despejo em qualquer parte de Espanha. Mas conseguir actuar por via de protesto não chegou para os envolvidos, pois a PAH conseguiu levar até ao Parlamento espanhol a discussão do problema e da necessidade de discutir a legislação – partindo de um protesto tornou-se num actor complementar do processo político. Este é um exemplo de como no contexto da política em rede, partidos e protestos podem cooperar.

Mas, mesmo correndo o risco de entrar no viés da proximidade, vale a pena olhar o protesto em curso em Portugal e construído em torno da apropriação dos NIF dos governantes portugueses para facturas de compras realizadas por outros cidadãos. Aquilo que surge como um "Movimento Anti Factura" acaba por, através da demonstração da facilidade do acesso aos NIF via www.nif.pt e da sua utilização imprópria, mostrar as falhas de um sistema. E como tal é, ao mesmo tempo, uma acção de protesto e um contributo para uma solução de algo que possui falhas mas cuja percepção pública – e por parte da administração fiscal – não existiria excepto perante um fenómeno massificado de subversão das regras estipuladas administrativamente. Pois, tanto os livros de reclamações das entidades públicas quanto as suas caixas de sugestões, embora parentes próximas do protesto, nunca têm o mesmo impacto na solução dos problemas e não estão ligadas à Internet.

A percepção de que não há solução para os nossos problemas e que nos temos de resignar a aceitar uma só solução possível é algo que normalmente cria as condições para o falhanço social e das organizações. Para que as sociedades e as organizações sejam capazes de singrar necessitam de ser colocadas em questão, porque depende dessa função social a capacidade de criar – não há dúvida que não é nada agradável ser colocado em causa, mas há sempre um ganho pessoal inerente, o de nos questionarmos e, caso necessário, tentar superar o até então feito.

A sociedade em rede em que vivemos necessita, na gestão política, da capacidade dos actores institucionais, os políticos, buscarem permanentemente inspiração no que se passa à sua volta e à volta dos protestos, pois será aí algures que as tendências que darão origem à solução se estarão a formar. Valermos-nos, na política, apenas dos conselhos oriundos dos nossos pares partidários, dos assessores, dos académicos, daqueles que partilham connosco os mesmos corredores (pertençam ou não às mesmas organizações políticas) não assegura nem a inovação nem a solução. Pelo menos não na sociedade em que hoje vivemos.

Sem protesto não há inovação política nas soluções e a nossa época, pela aceleração da economia e da comunicação, impõe a necessidade de permanentemente questionar as soluções, até porque, a capacidade de sucesso da solução depende da sua permanente adaptabilidade às condições em mudança. Daí, que hoje navegar na Internet seja preciso, mas se não existirem protestos não se criarão soluções, porque aqueles que elegemos nas eleições são poucos e não chegam para lidar com a complexidade dos problemas.

O autor é investigador e coordenador do Mestrado de Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação do ISCTE
 
 

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