Não há vazio em política

Um novo sistema político resultará do fim do actual. Com outros partidos. Com outro sistema eleitoral.

O Presidente da República fez um importante discurso nas comemorações do 5 de Outubro. Tanto mais importante quanto, além da pertinência com que tratou o tema foi exaustivo e sistemático na abordagem dos contornos e dos riscos do desgaste do sistema político português.

Foi certeiro quanto à falência da relação entre representantes e representados. Foi certeiro quanto à desconfiança dos cidadãos em relação à classe política. Foi certeiro quando falou do anquilosamento das instituições e da administração pública. Foi certeiro quando abordou o fechamento dos partidos. Foi certeiro quando alertou para o risco de implosão do sistema político. Foi certeiro até no tipo de comparações históricas que usou e a distanciação do momento presente que soube fazer em relação ao passado. Foi certeiro ainda quando equacionou a continuidade do projecto europeu. Assim como não se esqueceu da “natureza humana”, ou seja, do perfil dos que ocupam os cargos institucionais, os lugares públicos e as direcções dos partidos políticos.

Passando ao lado de certo alarmismo que possa ser apontado na escolha de alguns termos – como implosão –, opção feita seguramente para alertar os que andam mais distraídos, o discurso do Presidente da República fez um preciso e desassombrado retrato da crise de sistema político que se vive em Portugal.

O discurso do Presidente só passou ao lado de dois aspectos, provavelmente devido ao entusiasmo de agir que assola Cavaco Silva, agora que vê o fim da sua presidência o a aproximar-se e se apercebe das mudanças que Portugal sofreu durante a década do seu mandato como “primeiro magistrado da Nação”. Um entusiasmo de quem gostaria de poder corrigir o que está mal. Mesmo que a degradação do sistema político e da sociedade portuguesa em geral não seja de exclusiva responsabilidade sua. O primeiro esquecimento de Cavaco Silva foi um problema de desajustamento no tempo. O segundo tem a ver com o facto de que em política não há vazio.

Quanto ao desajustamento temporal de que sofre este discurso de Cavaco Silva, este é evidente. O Presidente está a ano e meio de terminar o seu segundo mandato. Por muito que os partidos concordassem com o diagnóstico e quisessem avançar para uma reforma do sistema político, bem como aceitassem passar a cultivar o diálogo e o compromisso políticos, a realidade é que o país está a menos de um ano de legislativas que - mesmo sem serem antecipadas - decorrerão logo no inicio de Outubro de 2015. Em época pré-eleitoral, os partidos estão já a posicionar-se no terreno da concorrência eleitoral. Esta circunstância inviabiliza qualquer possibilidade de existirem conversações sérias para uma reforma do sistema político.

É dos livros que nenhum dirigente partidário estabelece ou assina um acordo com outro partido seu concorrente em período de pré-campanha. Por isso, qualquer apelo de Cavaco Silva só poderá ser respondido na próxima legislatura e surgirá sempre como um legado que o Presidente deixa por resolver, não uma transformação em que Cavaco Silva pudesse intervir activamente.

O segundo esquecimento de Cavaco Silva indicia - eventualmente de modo errado – que o Presidente possa ter uma visão definitiva e fixa do sistema político, pretendendo manter sob controlo a sua configuração político-institucional. É certo que se os actuais agentes tivessem a iniciativa de mudar o sistema, as transformações poderiam ser parcialmente controladas. Embora haja sempre uma margem de imprevisto, a verdade é que se existisse entendimento partidário sobre a reforma do sistema, as consequências dessas mudanças poderiam em parte ser condicionadas.

Mas se nada for feito, a realidade se encarregará de evoluir por si mesma. E a reforma do sistema acabará por se impor. E ainda que possa não se chegar ao extremo de acontecer uma implosão do sistema partidário, como o Presidente teme, é possível que até já nas próximas legislativas mude a correlação de forças no Parlamento através da estreia de bancadas em representação dos novos partidos em formação.

A verdade é que ninguém antecipa o que será o sistema político daqui a 20 anos ou mesmo daqui a 10 anos. A única certeza que podemos ter é a de que em política não há vazio e que um novo sistema resultará do fim do actual. Com outros partidos. Outro sistema eleitoral. Provavelmente até com novas formas de representação  que convivam com as actuais estruturas de representação partidária.

Resta o desejo e a expectativa de que o funcionamento futuro da política seja mais representativo dos interesses e dos desejos dos cidadãos. E também que a representação política democrática, ainda que com novas formas e novas roupagens, possa permanecer. Até porque se em política não há vazio, é sabido que a história nem sempre é linear.

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