“Não existe solução”, diz António Costa

Receio que o candidato a primeiro-ministro do PS possa não concordar com o presidente da Câmara de Lisboa.

Pergunta: por que é que o país deu tanta atenção às declarações de António Costa sobre as inundações em Lisboa e à sua comovente confissão de impotência – “não existe solução para as cheias” –, replicadas em centenas de sites, tuítes, jornais e televisões?

Hipótese A: porque, em menos de um mês, os lisboetas ficaram por duas vezes com água pelos artelhos e o povo português não suporta a visão de peixes a serem atropelados nas passadeiras de Alcântara. Hipótese B: porque a ciência hidrográfica é uma velha paixão nacional e o plano de drenagem de Lisboa um assunto que merece há muito a nossa mais dedicada atenção. Hipótese C: porque ouvir o actual presidente da Câmara de Lisboa dizer que “não existe solução para as cheias” nos faz de imediato antever o futuro primeiro-ministro de Portugal confessar que “não existe solução para a austeridade”.

Adivinhem qual é a hipótese que eu prefiro. Pois é: nós ouvimos António Costa declarar que “não há solução”, e que seria uma “ilusão” afirmar o contrário, e já não queremos ouvir mais nada. A partir daí, é só alinhar belas frases de efeito, para satisfação das plateias de tascas e pastelarias, enquanto se beberica o café ou se trinca uma bifana. Género: “Se Costa nem sequer consegue consertar o caneiro de Alcântara, como é que vai consertar as contas do Estado?” Ou: “Será que a sua Agenda para a Década vai meter tanta água quanto a Baixa de Lisboa?”. E assim por diante, com essa verdadeira cereja em cima do bolo que é a resposta de António Costa ao convite da oposição para apurar responsabilidades pelas inundações: “São Pedro goza de um estatuto de imunidade que está acima das responsabilidades.”

Ah, ah, ah. Como piada, parece-me óptima, e representa uma evolução no seu pensamento em relação à anterior inundação, quando a culpa foi do Instituto de Meteorologia, que avisou que ia chover muito, mas não a potes. Agora, a culpa é de São Pedro, o imune. Só que da sua santa imunidade procede um problema político: António Costa apanha a boleia do discurso da inevitabilidade e de responsabilidades que estão para além do seu controlo, e é difícil sustentar o discurso da inevitabilidade em relação ao facto de a Baixa de Lisboa ficar a boiar de cada vez que sobre ela se abate uma borrasca de meia hora, enquanto se recusa um discurso de inevitabilidade em relação aos anos de austeridade, ao controlo do défice e aos sacrifícios dos portugueses.

Não me entendam mal: eu admito que António Costa tenha toda a razão em relação às cheias. Quando perguntamos porque é que não se implementa um plano de drenagem que já está pronto, parece-me legítima a resposta: “porque custa 153 milhões de euros”. Muito boa gente continua a agir como se o dinheiro do país caísse do céu, como a chuva. Cento e cinquenta milhões é uma pipa de massa, e o investimento pode não se justificar se, num balanço sério de custos e benefícios, o plano servir apenas para suavizar um par de inundações anuais. Não é por as imagens televisivas serem impressionantes que temos de ir a correr arrombar o cofre. Espero, contudo, que António Costa mantenha esta exigência de critérios quando chegar a sua vez de governar o país. Eu gosto de um político que diz, como ele disse: “Temos de ter a humildade de perceber que o ser humano não tem capacidade para controlar tudo.” Porque não tem, de facto. Receio somente – e seria uma pena – que o candidato a primeiro-ministro do PS possa não concordar com o presidente da Câmara de Lisboa.

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