Muitas marés, uma só vaga de descontentamento

Não teve a dimensão colossal anunciada pelos organizadores. Mas a manifestação que juntou multidões em várias cidades do país e que também foi marcada em Paris e em Londres mostrou que a apatia não é uma fatalidade dos portugueses.

Fotogaleria
Porto Paulo Pimenta
Fotogaleria
Aveiro Adriano Miranda
Fotogaleria
Aveiro Adriano Miranda
Fotogaleria
Aveiro Adriano Miranda
Fotogaleria
Lisboa Enric Vives-Rubio
Fotogaleria
Lisboa Enric Vives-Rubio
Fotogaleria
Aveiro Adriano Miranda
Fotogaleria
Lisboa Enric Vives-Rubio
Fotogaleria
Lisboa Enric Vives-Rubio
Fotogaleria
Porto Paulo Pimenta
Fotogaleria
Porto Paulo Pimenta
Fotogaleria
Porto Paulo Pimenta
Fotogaleria
Porto Paulo Pimenta
Fotogaleria
Porto Paulo Pimenta
Fotogaleria
Porto Paulo Pimenta
Fotogaleria
Porto Paulo Pimenta
Fotogaleria
Porto Paulo Pimenta
Fotogaleria
Porto Paulo Pimenta
Fotogaleria
Porto Paulo Pimenta
Fotogaleria
Lisboa Enric Vives-Rubio
Fotogaleria
Lisboa Enric Vives-Rubio
Fotogaleria
Porto Paulo Pimenta
Fotogaleria
Lisboa Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Lisboa Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Lisboa Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Lisboa Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Lisboa Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Lisboa Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Lisboa Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Lisboa Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Fotogaleria

Raquel Martinho entra no Terreiro do Paço de cartaz em punho, ainda não são seis da tarde. Aos 17 anos, é a primeira manifestação em que participa. “Antes cavalo no meu hambúrguer do que coelho no Governo”, diz o cartaz quase infantil, em que colou fotografias do primeiro-ministro e de um equídeo.

“Ainda não posso votar, portanto não posso escolher quem me governa. A ver se isto melhora, se posso ir para a faculdade”, diz a adolescente vinda das Galinheiras, um bairro social lisboeta. Ao lado, a irmã de 21 anos reduz-lhe as esperanças: talvez não haja dinheiro para isso.

Um mar de gente vinda do Marquês de Pombal continua a desaguar na enorme praça, mas há quem desmobilize e vá para casa antes da hora combinada para entoar em coro a contra-senha do 25 de Abril. Os organizadores do protesto, o movimento Que Se Lixe a Troika, anunciam no palco montado no Terreiro do Paço um cenário que as imagens aéreas das televisões desmentem: “Esta é a maior manifestação de sempre em Lisboa!”. Maior portanto do que a que organizaram a 15 de Setembro e que era, para todos, o desafio a ultrapassar. Pelas suas contas, terão estado nos protestos das dezenas de cidades portuguesas e algumas estrangeiras, como Paris, Londres e Budapeste, mais de milhão e meio de pessoas. No Twitter, diriam mais tarde que em Lisboa se juntaram 800 mil pessoas. Fora do país, Madrid foi a cidade que reuniu menos gente: só compareceram seis jovens.

Já dentro do país, mesmo nos bastiões laranja, houve centenas de pessoas na rua. “Passos e Cavaco vão ver se chove, não queremos voltar ao séc. XIX”, gritou-se em Viseu. Em Aveiro, e segundo dados da polícia, juntaram-se cinco mil pessoas. Os manifestantes concentraram-se no Largo da Estação. “Emprego, saúde e educação. Troika não” era um dos motes da marcha que terminou no Marquês de Pombal.

No Terreiro do Paço o manifesto pedindo a demissão do Governo ainda não começara a ser lido quando chegaram vários manifestantes em cadeiras de rodas. Mais atrás vem a “maré cinzenta” dos idosos, com guarda-chuvas pretos e brancos. “Roubar os reformados é crime”, entoam. Manuel e Elvira Assunção, um casal de octogenários sem filhos, espremeu-se pelos corredores apinhados do metro para poder ir ao protesto. Ela mirrada da idade, ele a sofrer as sequelas de uma tuberculose óssea na infância: “Tínhamos que vir para a luta, nem que fosse de muletas!” Diluiram-se na multidão a que o analista e constitucionalista José Fontes classifica como um grande grupo inorgânico, heterogéneo, que sabe perfeitamente porque protesta, mas não coincide nas soluções para o problema. “Há muitos a pedir a demissão do Governo, mas também há muitos para quem isso não faz sentido. Quando se diz ‘Governo para a rua’ também se está a falar do anterior governo.”

Para Fontes, são sobretudo de injustiça e de iniquidade os sentimentos que movem quem protesta, e que deixou de compreender, por falta de capacidade pedagógica dos governantes para explicar as medidas adoptadas, o objectivo de tantos sacrifícios. Hoje a meta é reduzir o défice, amanhã já é outra. “O Governo, que é muito mau na comunicação política, devia aproveitar esta manifestação a seu favor para ser mais reivindicativo com a troika. Não pode ignorar a mobilização de tantas pessoas muito para além das bases partidárias”, sugere o constitucionalista.

Os partidos fizeram, aliás, por apagar a sua presença no protesto. Era do Bloco de Esquerda o maior cartaz que desfilou em Lisboa, uma gigantesca estrutura com rodas. Mas não tinha qualquer símbolo do BE.

Foram seis “marés” e um só destino: Terreiro do Paço, onde desaguou a manifestação, ao som de Grândola Vila Morena, uma canção repetida por volta das 18h30 em muitas das capitais de distrito. As “marés” da Saúde, da Educação, dos Reformados, das Feministas, a “maré” Arco-íris ajudaram a dar ao dia de luta o carácter transversal que a organização pretendia. O sociólogo José Manuel Mendes, da Universidade de Coimbra, elogia a ideia importada de Madrid: “Dá coesão à manifestação. As pessoas sentem-se seguras. Comungam da sua causa e ao mesmo tempo têm uma causa colectiva.” Menos conseguidos, no seu entender, foram o percurso escolhido e a eficácia do protesto. “O sítio do poder por excelência é a Assembleia da República, não o Terreiro do Paço. E para terem algum impacto as manifestações têm de ter alguma tensão — o que aqui não se verificou. Quando se cantou a Grândola no Terreiro do Paço houve quem tivesse chorado, e as emoções não são boas para o trabalho político. Nem ajudam a construir um discurso de cidadania”, diz o investigador, a quem agradou a discrição da presença policial. Foi assim nas principais cidades, e o Porto não foi excepção. Aí a PSP acabou por deter dois jovens (mais tarde libertados sem acusação) que atiraram balões de tinta contra bancos e monumentos públicos, o que gerou tensão, já que muitos dos que estavam a assistir não se aperceberam do motivo que levou a polícia a agir.

“As pessoas estão preparadas para activarem comportamentos mais violentos”, analisa o sociólogo, chamando a atenção para o vernáculo que desta vez invadiu muitos dos cartazes. “Havia alguns muito duros, levados até por crianças”, assinala. Noutros casos, foram turistas a empregar uma linguagem menos púdica. “Vaffanculo Berlusconi”, lia-se num cartaz em Lisboa.

Em Coimbra, ao início da tarde Alice, de 20 meses, era, à primeira vista, a mais nova das manifestantes. Foi com o pai, Luís Marques, um psicólogo de 35 anos que sempre trabalhou a recibos verdes. Disse que as pessoas “não aguentam mais” e que, quando assim é, só há uma coisa a fazer: “Vir para a rua.”

Com mais ou menos eficácia, o dia serviu, no entender de José Manuel Mendes, para mostrar algo que há muito defende: “Os portugueses não são apáticos. Isso são efabulações.” José Fontes tem um entendimento semelhante. “Muitas das pessoas que foram para a rua votaram no PSD ou no CDS”, salienta. “Agora, o Governo pode demonstrar à troika que o povo não está adormecido”. Porque a dissolução da Assembleia da República, nota, é um cenário impossível.

O protesto deixou o executivo em silêncio. A manifestação não mereceu qualquer comentário por parte do Governo. Longe dos protestos e com uma agenda própria, o líder do PS disse haver “muitas razões” para os portugueses se manifestarem. “Têm muitas razões para estar indignados e para protestarem e exigirem uma mudança de política. As responsabilidades do PS aumentam”, disse António José Seguro numa iniciativa partidária em Arronches, Portalegre. Seguro, que elegeu o desemprego como problema central, acusou o primeiro-ministro de “inconsciência social”.

Num discurso mais duro para o executivo de Passos Coelho, os deputados do PS Pedro Nuno Santos e Duarte Cordeiro disseram esperar que as manifestações tenham como efeito a queda do Governo. “Não tenho dúvidas de que as manifestações têm um grande impacto junto de quem tem o poder. Já foi assim a 15 de Setembro, em que as manifestações derrotaram as alterações à TSÚ. Espero que esta manifestação tenha um efeito ainda maior: a queda deste Governo”, disse Pedro Nuno Santos. Para Cordeiro, a linha já foi ultrapassada: “Se o Governo se demitisse, seria positivo para o país.”

Os deputados socialistas João Galamba e Isabel Moreira (independente) também estiveram na manifestação em Lisboa. E a eurodeputada Ana Gomes repetiu a participação. “Estou aqui porque sou cidadã portuguesa e da Europa e quero lutar contra as políticas de austeridade que estão a matar o povo português e da União Europeia”, justificou a socialista. Gomes quer ver “este Governo na rua, porque não tem capacidade de se afirmar”.

A demissão do Governo tabém foi exigida pelo PCP. O eurodeputado e candidato a presidente da Câmara de Lisboa João Ferreira disse que o protesto mostra que o Governo “perdeu a legitimidade”. Acompanhado pelos deputados Miguel Tiago e Rita Rato e outros militantes comunistas na descida da Avenida da Liberdade, disse ter a certeza de que o protesto “terá consequências” e observou que “não é por acaso que se volta a entoar a Grândola, Vila Morena nas ruas de Lisboa. A leitura é partilhada pelo coordenador do BE, João Semedo, que disse ter sido “uma das maiores manifestações da democracia”. Um sinal de que “a troika e o Governo estão a mais no país”, disse. A manifestação atraiu outros ex-dirigentes bloquistas como Francisco Louçã, que entoou as palavras de ordem “Está na hora do Governo se ir embora”.

O mesmo discurso de demissão do Governo foi repetido pelo líder da CGTP-IN. “Este Governo não tem legitimidade política, moral e ética para continuar a governar”, disse Arménio Carlos.

Três horas depois de saírem do Marquês de Pombal, às 19h50, as últimas duas “marés” de Lisboa chegavam ao destino, a Praça do Comércio, de onde muita gente saiu depois de se ter cantado a Grândola. O presidente da Associação Nacional de Sargentos, Lima Coelho, não perdia a esperança: “Estas coisas têm de ter consequências.”

Com Andrea Cruz, Graça Barbosa Ribeiro, Hugo Torres, Luciano Alvarez, Maria José Santana, Mariana Oliveira, Pedro Rodrigues, Sofia Rodrigues e Victor Ferreira

Sugerir correcção
Comentar