Maria Barroso

Maria Barroso convidou-nos a superar o sectarismo autoritário e tribal da I República e do Estado Novo.

A homenagem nacional espontânea que os portugueses prestaram na semana passada a Maria Barroso pode ser olhada como uma doce mensagem para todos nós. Uma doce mensagem, seguramente, sobre a personalidade de Maria Barroso. Mas também uma doce mensagem sobre o discernimento dos portugueses — que compreenderam e admiravam a singular mensagem de democracia e nobreza de Maria Barroso.

Na véspera da fatídica queda em sua casa, na quinta-feira 25 de Junho, Maria Barroso tinha estado todo o dia no Estoril Political Forum, no Hotel Palácio do Estoril, que decorreu entre segunda e quarta-feiras. Há muitos anos que estava sempre connosco nesse encontro internacional (bem como em muitas outras, quase todas, iniciativas do IEP). Foi no Estoril Political Forum que o IEP lhe atribuiu, em 2012, o prémio Fé e Liberdade, apresentado por Manuel Braga da Cruz. E há muitos anos que Maria Barroso está na nosso fotografia de grupo anual do Estoril. Este ano também.

Pedíamos sempre a Maria Barroso que se sentasse na primeira fila, o que ela aceitava com relutância, após manifestar preferência por um lugar menos central. Numa das sessões da tarde de quarta-feira, o orador principal era José Manuel Durão Barroso. Quando chegou, dirigiu-se para o seu lugar na mesa e não viu Maria Barroso, que estava sentada na primeira fila mas rodeada por várias pessoas de pé. Quando o viu chegar à mesa, ela imediatamente se levantou e foi cumprimentá-lo. Um súbito silêncio no vasto salão Atlântico rodeou esse pequeno gesto.

Em rigor, estes seus pequenos gestos não nos surpreendiam — faziam já parte da nossa querida Maria Barroso, que tanto admirávamos. Mas todos sabíamos que eles exprimiam uma nobreza de carácter — com a qual procurávamos aprender.

Maria Barroso era para nós também, e talvez antes de mais, uma educadora. Uma professora de “Educação do Carácter”, talvez a mais difícil e indefinível matéria que está no centro da ancestral missão da Universidade — infelizmente hoje muitas vezes esquecida pela pobreza do cientismo positivista.

 

Um elemento importante do nosso esforço de educação do carácter a partir do exemplo de Maria Barroso era a sua condição de membro e fundadora de um partido político, no seu caso, o Partido Socialista.

Maria Barroso assumiu-se sempre como socialista. Mas apreciava ouvir e entrar em conversação com opiniões diferentes, por vezes contrárias às suas — o que era muito frequentemente o caso numa instituição universitária e pluralista como o IEP-UCP.

Numa cultura política ainda naturalmente marcada pelo sectarismo autoritário e tribal da I República e do Estado Novo (para não falar do atavismo marxista da nossa esquerda caviar), esta abertura intelectual de Maria Barroso parecia dificilmente compatível com a sua pertença a um partido político.

Mas ela parecia querer sugerir-nos que essa incompatibilidade não existe numa cultura política realmente pluralista. Ela parecia querer sugerir-nos que havia um significado mais profundo na liberdade de poder ter um partido — mais profundo do que simplesmente poder pertencer a uma tribo e poder odiar e perseguir todas as outras.

Ela parecia querer sugerir-nos que a liberdade de ter um partido supõe, crucialmente, a indispensabilidade de existirem outros partidos e outras opiniões. Esta indispensabilidade talvez decorra do facto de cada um de nós, e de cada partido, saber muito pouco e cometer muitos erros.

Este era seguramente o entendimento de Karl Popper — que Mário Soares, Maria Barroso e a filha Isabel fizeram questão de visitar privadamente após uma visita de estado do Presidente Soares a Inglaterra, em 1992. Porque sabemos muito pouco, dizia Karl Popper, precisamos do permanente confronto com as opiniões contrárias dos outros, incluindo dos outros partidos. “Mesmo se todos concordassem com um partido, dizia Popper, um segundo partido devia ser inventado.”

Este é o mistério e a beleza da democracia parlamentar, pela qual Maria Barroso se bateu exemplarmente. Esta democracia não existe sem rivalidade, por vezes dura, entre partidos. Mas essa rivalidade só existe e, sobretudo, só pode ser duradoura, se cada partido admitir a indispensabilidade de existirem outros. E se todos admitirmos a indispensabilidade de podermos aprender com a controvérsia livre e civilizada entre eles.

Para mim, esta foi uma das principais lições de Maria Barroso: o doce e nobre convite a superarmos o sectarismo autoritário e tribal da I República e do Estado Novo, bem como o atavismo marxista. Podemos e devemos “dividir-nos” em partidos. Mas estamos unidos no entendimento de que precisamos dessa “divisão” para compensar a nossa condição humana de falibilidade e imperfeição.

Uma condição que decorre, em última análise, de que nenhum de nós é Deus.

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