Mais prudência à direita, sff

Ontem encontrei uma bandeira grega pendurada no Chiado com os seguintes dizeres: “Amo-te, Grécia, pela coragem contra o imperialismo.”

Esta bandeira é certamente um resquício das manifestações do fim-de-semana, mas é sobretudo um resquício de uma mentalidade poeirenta que já deveria ter sido removida de todas as cabeças que não ficaram congeladas em 1989. Só que, infelizmente, boa parte da nossa esquerda tem uma vocação aparatosa para se mumificar a si própria, o que neste caso se traduziu num cruzamento de linguagem estalinista com sentimentalismo bacoco – “amo-te, Grécia”, diz o português gauchista depenado, que considera a sobretaxa de IRS para pagar as dívidas portuguesas uma tremenda injustiça, mas que não tem quaisquer problemas em oferecer um perdão de dívida à Grécia no valor de várias sobretaxas de IRS.

Mas se esta é a atitude habitual da velha esquerda as-dívidas-não-se-pagam-gerem-se, cujo espírito estatista e keynesiano on steroids nos enfiou neste tremendo buraco, a verdade é que há muito tempo que eu não me sentia tão solitário na minha área ideológica. É que já são demasiados artigos revanchistas, demasiadas declarações emproadas do Governo, demasiadas bocas do Presidente da República, demasiados se-não-formos-19-ficamos-18 para o meu gosto. A maior parte da direita está com sérias dificuldades em esconder o seu desejo de chutar a Grécia para fora do euro, e esse é um sentimento que compreendo mal, na medida em que ele me parece simétrico ao da bandeira grega no Chiado. Basta hasteá-la do avesso e escrever assim: “Odeio-te, Grécia, por votares a favor do comunismo.”

Nenhuma das atitudes se recomenda. Porque se existe uma esquerda lunática que ainda está convencida de que 2 + 2 podem ser 5, convinha não termos como contraponto uma direita cheia de si própria, que acha que a Grécia tem de ser reduzida ao papel de “vacina” porque votou no Syriza. Longe de mim defender o Syriza e os seus revolucionários do statu quo, mas convém termos algum sentido das proporções. Os gregos elegeram Alexis Tsipras? Sim, é verdade. Mas nós elegemos José Sócrates. Duas vezes. E se da primeira vez ainda se compreende o engano, a segunda vez é mais incompreensível do que a vitória do Syriza na Grécia. Mais: o próprio Governo português deveria ter algum pudor em encher tanto o peito. O seu papel reformista está longe de ter alcançado a eficácia e a profundidade que os portugueses mereciam, e se nós não estamos na posição da Grécia devemo-lo tanto a Passos Coelho e aos seus ministros das Finanças como a Mario Draghi e à actuação do BCE.

Mas, sobretudo, esta mania de apontar a porta da saída à Grécia é triplamente chocante. Chocante, porque ninguém pode avaliar a dimensão do abalo do Grexit numa união monetária que era suposto ser indissolúvel. Chocante, porque a direita não pode transmitir às pessoas uma ideia de Europa resumida à eficácia da moeda única ou de um conjunto de opções de natureza estritamente económica; a União Europeia é muito mais do que isso – é um projecto político, um sonho de progresso, um ideal de livre circulação e de aproximação entre povos. Chocante, porque virar as costas à Grécia é uma demonstração de insensibilidade por parte da direita, que deve meter isto na cabeça: pode-se amar a liberdade individual e reconhecer, em simultâneo, que o aumento das desigualdades é um gigantesco problema contemporâneo. A Grécia não tem toda a razão – mas alguma razão, ela tem.

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