Perfil de Francisco Louçã: o líder que nunca esteve em cima do muro

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Francisco Louçã foi líder do Bloco e deputado durante 13 anos Foto: Enric Vives-Rubio

Apontam-lhe inteligência muito acima da média articulada com a capacidade de estabelecer consensos. Viajou do PSR ao BE. Foi sempre trotskista. Preso aos 16 anos pela PIDE, viu o seu nome há pouco tempo ser vetado na China. Texto originalmente publicado no PÚBLICO de 25 de Agosto de 2012

Os pormenores da divulgação da sucessão de Francisco Louçã na liderança do BE foram combinados há escassas semanas numa viagem a Paris.

Acompanhado dos dirigentes do partido João Semedo, Fernando Rosas e José Manuel Pureza, Louçã visitou pela primeira vez Versalhes, depois de tantas idas à Cidade Luz. E o homem, aparentemente tímido, mas com uma paixão enorme pelo risco, teve tempo de coordenar tertúlias políticas com uma volta de montanha-russa. Sozinho e deixando aflitos os companheiros de férias.

Francisco Louçã, que fará 56 anos a 12 de Novembro, no dia seguinte ao fim da Convenção do BE, na qual já anunciou que não se recandidatará à liderança, viveu alguns anos em Moçambique, mas voltou a Lisboa com cinco anos. O pai, oficial da Marinha, e a mãe, advogada, nunca o baptizaram. Ateu, segundo de cinco irmãos, cresceu numa família hostil a Salazar e solidária com os presos políticos. Diz que o avô materno, António Anacleto, esteve no congresso fundador do PCP e era amigo de Francisco Sá Carneiro, que o convidou mais tarde para ser deputado pelo PSD. Era "basicamente um anarco-sindicalista". Já do lado paterno havia alguns comunistas.

Louçã foi preso com 16 anos pela primeira vez em 1972 na vigília pela paz na capela do Rato, em Lisboa, onde os católicos progressistas organizavam reuniões de solidariedade com os presos políticos e contra a Guerra Colonial. Era noite de passagem de ano e, ao lado do seu melhor amigo Miguel Teotónio Pereira, já não apareceu na casa dos avós. Saiu de Caxias uns dias depois sob uma caução de seis mil escudos. No final de 1973 foi convidado para integrar a Liga Comunista Internacionalista (LCI), que viria, junto com o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), a dar origem em 1978 ao Partido Socialista Revolucionário (PSR).

Louçã dedicar-se-lhe-ia a fundo até à constituição do BE em 1999. Ano em que, a par de Luís Fazenda, é eleito deputado à Assembleia da República.

"Marcou de uma maneira muito forte os debates no Parlamento. É um deputado temido e respeitado em todas as bancadas, é criticado por ter um estilo excessivo, penso que é uma das suas grandes qualidades. Destrinça a política palaciana da política que conta para as pessoas", argumenta o professor universitário José Manuel Pureza.

"Um antro de comunistas!"

O aluno excepcional destacou-se logo no liceu, embora já na primária tivesse feito dois anos num só. Estudou no Liceu Padre António Vieira e agraciado com o prémio D. Diniz, para melhor aluno do país no secundário, informou o liceu de que não iria comparecer na cerimónia. O dito era entregue à data pelo então presidente Américo Tomás e com 15 anos isso já era "complicado" para Francisco.

Optou por estudar Economia na faculdade, escolha reforçada por Marcello Caetano, professor da mãe e a quem foi apresentado com 14 anos numa festa de aniversário de uma amiga dos pais. O presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo ter-lhe-á dito acerca da sua escolha: "Um antro de comunistas!" Ficara então ainda mais decidido.

Terminado o curso e o mestrado, partiu para Inglaterra para fazer o doutoramento, recusando o convite para ingressar de imediato na carreira de docente no Instituto Superior de Economia e Gestão, onde viria mais tarde a dar aulas e onde é professor catedrático. No currículo de professor tem passagens por universidades da Venezuela, Alemanha, Holanda ou Itália. Com 11 livros publicados e inúmeros artigos científi cos e presenças em conferências internacionais, tem outras paixões fora da cátedra. Literatura, música e cinema: "Ler é uma forma de descansar", diz Louçã.

José Falcão, fundador da SOS Racismo e amigo e camarada de Louçã no PSR e no BE, com quem chegou a partilhar casa em Lisboa, diz que "nunca houve uma paranóia do Xico com direcções": "É uma fita, nunca foi agarrado ao poder. No PSR nunca houve gente que escrevia e outros que limpavam a casa, ele fazia jantares ou segurança em concertos.

As direcções onde estivemos sempre foram colectivas. O Xico é um tipo normal, só que é um cromo em economia." Se a Louçã é reconhecido em uníssono uma inteligência excepcional e uma capacidade de trabalho extraordinária, que Rosas e Pureza admitem invejar, é preciso mais do que isso para "fabricar" um líder. Alia o carisma a uma capacidade invulgar, nas palavras do médico João Semedo, que o conheceu ainda antes do 25 de Abril: "Pensa a política como um jogador de xadrez pensa o jogo. Antecipa as consequências e as respostas. Tem uma grande capacidade na polémica, é muito difícil travar uma discussão com o Francisco. A maior característica dele, e que não existe em grande parte dos políticos portugueses, é saber combinar muito bem o sentido táctico, a forma de lá chegar, e o sentido estratégico das propostas políticas. É perspicaz, certeiro e muito construtivo."

Fernando Rosas, que com Louçã, Miguel Portas e Luís Fazenda é um dos quatro fundadores do BE, e que anos antes Louçã convidou para integrar como independente as listas do PSR às legislativas, reitera que "o Xico é excepcionalmente inteligente": "Conhecem-se quatro ou cinco pessoas assim ao longo da vida. É um homem de nunca desistir, de princípios firmes, mas com uma grande maleabilidade táctica. É um dirigente tipicamente carismático. O Francisco não é um homem que esteja em cima do muro, sempre esteve de um dos lados do muro."

As Time Goes By

Rosas, professor catedrático de História, acredita que ele "poderia ter sido Nobel da Economia se tivesse feito essa escolha, escolheu a política".

Convidado em 2005 pelo Banco Mundial para dar uma conferência em Pequim ao lado de quatro ilustres economistas, entre eles o Nobel Michael Spence, foi desconvidado com a justifi cação de que o Governo chinês tinha aconselhado a que o programa fosse revisto. Em contrapartida, a Universidade de Pequim traduziu e publicou o seu livro As Time Goes By. Sempre trotskista, Louçã faz ainda parte da IV Internacional.

Rosas encontra razões para a sua saída da liderança: "Penso que uma das razões que o leva a abandonar a coordenação do Bloco é ter tempo para estudar com mais profundidade as questões económicas e sociais. Ele precisa disso, de parar, de estudar, mas para intervir. São anos de desgaste, as pessoas precisam de pausa para respirar", diz. E defende que é absurda a teoria de que Louçã, ao propor Semedo e Catarina Martins para a sucessão, queira "perpetuar uma direcção fraca para manobrar na sombra": "Ele tem uma ética duríssima na política. É de uma grande tolerância, mas também de muita intransigência. Quando se convence de uma coisa, é muito difícil convencê-lo do contrário, o que é próprio dos homens muito inteligentes, mas respeita em pé de igualdade quem não está de acordo. É um dirigente de consenso e não de ruptura."

Mas o ex-líder da Ruptura/FER e actual dirigente do Movimento Alternativa Socialista (MAS), Gil Garcia, que saiu do BE em colisão com a direcção em Fevereiro deste ano, tem uma visão diferente do homem que conheceu logo após o 25 de Abril e com quem esteve também na fundação do PSR. Reconhece-lhe as qualidades intelectuais mas aponta-lhe "o culto da personalidade" e o "estilo draconiano" nas reuniões: "É um quadro incansável, dos mais brilhantes da sua geração, mas é também muito autoritário, não suporta a crítica, não tem a humildade dos sábios. Ostraciza, ridiculariza quem não concorda com ele. Nunca me pôs nos lugares elegíveis e a Ruptura/ FER tinha 15%, 11 representantes na Mesa Nacional. Ele potenciou o BE com as suas qualidades, mas o contrário também é verdade e não sei o que pesa mais. Ele tinha as mesmas qualidades nos anos 80 e nem 1% dos votos tinha." Confrontado com as críticas de ser demasiado dirigista, o líder responde: "Creio que qualquer pessoa que tem uma responsabilidade política forte toma decisões difíceis, arriscadas e, por vezes, corre o risco de ser injusto para com amigos e activistas.

Mas os militantes do BE, gostem ou não do que eu fiz, sabem que não houve ninguém que fizesse tanto esforço para fazer pontes e consensos, para multiplicar protagonismos. Eu saí do Parlamento em rotatividade (quando o regulamento da Assembleia da República o permitia), para entrar a Joana Amaral Dias. Tenho orgulho disso."

Sérgio Vitorino, bloquista e activista do movimento LGBT, que tem um olhar crítico sobre decisões de fundo que o partido tem tomado, diz que "ele é como peixe na água" a ouvir as pessoas. Vitorino considera que a tendência de Louçã para centralizar é mais responsabilidade do BE na escolha do seu modelo de direcção do que do próprio. "Há uma efabulação à volta da eternização dele na liderança, os partidos têm dirigentes há 20 anos..."

Gil Garcia defende que o argumento da renovação geracional utilizado por Louçã para justificar a sua saída é "uma treta". "A razão profunda por que ele sai são os resultados de 2011", diz, aludindo à perda de metade da bancada parlamentar nas últimas legislativas, em que o BE passou de 16 para oito deputados.

Mas Garcia reconhece que sai pelo seu pé: "Ele não podia ser o pai do crescimento e do definhamento. Sai como o Mário Soares para a reserva da República, vai andar sempre por ali, sendo para a esquerda alternativa um Deus na terra. Mas é uma decisão dele, ninguém o tirava de lá, ninguém se atreveria a contrariá-lo." Rosas vê o amigo de outra forma, um dirigente que "ouve e pede conselhos, mas que é rápido a decidir".

Se lhe reconhecem reserva da vida privada - é casado com a médica Ana Correia de Campos e tem uma filha chamada Joana, ambas militantes do Bloco - e uma certa timidez, que contrasta com um "fantástico sentido de humor", admitem que é cerebral.

"É tudo menos emotivo, é de uma racionalidade gélida, não está em causa para onde pende o coração e prevê tudo. Tudo é pensado em termos de impacto mediático, foi ele que trouxe essa preocupação para a esquerda radical. Tem uma genuína irritação pela leviandade na política. Nunca aquele homem perdeu a cabeça", diz Rosas.

Descalço no terraço

Seminarista, impenetrável ou tímido? Semedo dá pistas: "Cada um de nós é de carne e osso. Temos feitios, não acho que ele seja demasiado sério e se houve político que introduziu ironia no discurso político foi ele." Mas Louçã concretiza: "Há escolhas que se fazem, o resto... cada um dá o que tem. É a história do Presidente Lincoln, um homem muito feio, que, quando confrontado por um congressista que lhe disse que era um homem de duas caras, lhe respondeu: 'Acha que se eu tivesse outra usava esta?'"

Descalço no terraço da sua casa em Lisboa, Helena Neves, ex-deputada bloquista e professora universitária, terá ficado surpreendida com a imagem. Convidada para uma festa que Louçã faz habitualmente em casa "para comemorar o Solstício de Verão", Helena surpreendeu-se com uma visão tão descontraída do líder: "Fiquei espantada quando vi a relação que ele tinha quer com a mulher quer com a filha. Estava a pôr a mesa e a fazer patés, o bom humor do Xico que punha paté no nariz da filha, uma relação fantástica e de enorme cumplicidade. Ele tem uma enorme reserva de ternura."

É esse companheiro de viagem que Pureza também recorda, quando nos EUA, à chegada a uma cidade chamada Lebanon, Louçã mandou o grupo parar e fotografar para "mandar ao Miguel [Portas], que tinha uma paixão pelo Líbano".

Sem que ninguém negue que a imagem do BE se confundiu com o rosto de Louçã e que a sua substituição sendo inevitável é difícil, o homem que se descreve como "incansável" é também, nas palavras de Rosas, "inimigo jurado da imperfeição e do improviso".

Mas no dia em que foi despenalizado o aborto, em 2007, e em que, segundo Louçã, José Sócrates lhe telefonou três vezes, o líder arriscou contra os conselhos mais prudentes de Fazenda. Os bloquistas tinham uma faixa preparada para a vitória: "Tínhamos feito um fundo com a inscrição 'entrámos no século XXI' e lembro-me da discussão com Fazenda e outros dirigentes de às 19h55 (por causa do fecho das urnas nos Açores) pormos a faixa na Avenida da Liberdade. Ligávamos ao Instituto de Sondagens e diziam que estava tremido. Diziam-me: 'Se perdermos, parecemos patetas.' E pusemos. Foi uma noite extraordinária."


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