Linhas de convergência e fractura no mapa político-doutrinário europeu

1. A interpretação da história e a compreensão dos acontecimentos políticos só podem ser alcançados se dedicarmos a devida atenção ao domínio do simbólico. Vinte e cinco anos depois de François Mitterrand e Helmut Kohl se terem dirigido conjuntamente ao Parlamento Europeu, em Estrasburgo, o actual Presidente francês e a presente Chanceler alemã decidiram repetir o gesto. Se os seus antecessores tiveram como ensejo a derrocada do mundo soviético e o consequente fim da Guerra Fria, François Hollande e Angela Merkel reconheceram na crise dos refugiados e na necessidade de aperfeiçoamento do modelo institucional europeu motivos suficientes para a realização desta iniciativa.

Os seus discursos foram claros e contundentes. Merkel reiterou a vontade de melhorar os mecanismos de acolhimento dos refugiados, preconizando um maior apoio aos países que estão na primeira linha de recepção dos mesmos. As suas palavras impressionaram pela determinação que encerravam. Mesmo questionada − se não mesmo amplamente criticada − no seu próprio país, a Chanceler parece obstinar-se em prosseguir uma acção a que não será alheia a sua condição de antiga habitante de um país submetido a uma férrea ditadura. Ela sabe que cada fuga é também − e talvez seja sobretudo isso − uma demanda da liberdade. Estes homens e estas mulheres não procuram apenas escapar à desventura da guerra, almejam também superar o fatalismo de um destino traçado. Para eles, a Europa, e em especial a Alemanha, têm um significado que por vezes somos levados a desvalorizar na nossa rotina Ocidental – o de perspectivar uma prosperidade entendida como condição imprescindível para a plena efectivação da dignidade e da própria liberdade. Merkel terá cometido muitos erros no passado, mas num momento decisivo revelou estar à altura do que as circunstâncias histórias lhe exigiam. Ontem, em Estrasburgo, as suas palavras foram saudadas com uma grande ovação de todos os parlamentares europeus não integrados em formações políticas extremistas.

Hollande pronunciou uma declaração mais extensa e conceptualmente mais elaborada. Lembrou a afirmação proferida por Mitterrand no mesmo local pouco antes de abandonar a presidência −"o nacionalismo é a guerra" − e ousou proclamar que "o soberanismo é o declínio". De forma especialmente impressiva salientou a necessidade de reforçar a integração europeia, alertando para os riscos de um recuo neste processo, o que teria como efeito a neutralização da influência dos vários Estados europeus no novo quadro internacional. O Presidente francês salientou ainda a importância histórica do eixo franco-alemão como elemento motor do projecto europeu.

Como em todos os actos de natureza celebratória houve instantes de cedência a um impulso encantatório insuficientemente confirmado pela realidade. Mau grado isso viveu-se um momento de indiscutível pregnância do espírito europeu no que este contém de melhor enquanto aspiração e vontade de consagração da herança liberal-democrática Ocidental.

Os partidos extremistas, de esquerda e de direita, explanaram também com a habitual virulência os seus pontos de vista. Não incorrendo na ofensa de estabelecer uma absoluta equivalência entre a extrema-esquerda anticapitalista e a extrema-direita ultranacionalista e xenófoba, não podemos deixar de assinalar algumas similitudes nos respectivos discursos: o antiliberalismo, o anti-americanismo, a germanofobia, a incompreensão do fenómeno da globalização, o culto do proteccionismo, a apologia de um soberanismo datado e a contestação a tudo o que represente um incremento do federalismo europeu. Nestes momentos simbólicos tornam-se mais visíveis as linhas de convergência e de fractura que desenham o mapa político-doutrinário europeu. É hoje muito claro que assistia inteira razão a Norberto Bobbio quando preconizava que tão ou mais importante que a dicotomia direita-esquerda era a contraposição entre moderados e extremistas em cada um destes campos políticos. No caso europeu não há a mais pequena dúvida de que a grande linha de demarcação é precisamente esta última.

2. O parco resultado alcançado pelo PS nas eleições do passado Domingo constitui mais uma manifestação da crise que percorre a família social-democrata europeia. Na verdade, os partidos políticos que se destacam na defesa de uma posição equilibrada entre a valorização da liberdade individual e a promoção da justiça social pela via da intervenção estatal não têm beneficiado de amplo reconhecimento eleitoral. O eleitorado europeu parece polarizar-se em torno de um núcleo liberal conservador, por um lado, e de núcleos extremistas de esquerda e de direita, por outro. No fundo este comportamento revela um estado de enorme ansiedade colectiva. A Europa está instalada entre o medo e o desespero. Urge, por isso mesmo, a  prossecução de um amplo trabalho teórico tendo em vista a renovação programática da oferta social-democrata. Esse trabalho tem de contar com a participação de todos quantos no essencial se reconhecem neste espaço político, independentemente de se colocarem mais à direita ou mais à esquerda. É essa reflexão aberta e sem preconceitos de qualquer espécie que tem faltado. Sem isso estaremos condenados a um estatuto de subalternidade que em nada beneficiará o interesse das nossas sociedades democráticas. Sejamos capazes aqui em Portugal e a partir do Partido Socialista levar a cabo tão importante reflexão.

3. A minha decisão já estava há muito tomada. Por razões óbvias não a quis tornar pública até ao Domingo passado. O que se passou nesse dia reforça a minha convicção quanto à necessidade de elegermos um Presidente da República oriundo do espaço político da esquerda democrática e dotado de uma grande capacidade de promover o diálogo entre os múltiplos sectores políticos, sociais e culturais portugueses. Maria de Belém Roseira tem todas as condições para vir a desempenhar de forma exemplar as funções de Presidente da República a que se candidata. Contará, por isso, com o meu apoio.

 

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