Liderar de dentro de um armário

Seguro explicou muito bem o que fez até agora: colocou a sua “liderança” “dentro de um armário”, de que só o desafio de Costa o fez sair.

Pouca coisa revela tão bem a degenerescência burocrática dos partidos e a sua captura pela partidocracia do que o actual processo no PS.

É verdade, e toda a gente que conhece história e ciência política sabe-o, que o problema das oligarquias partidárias é inerente aos partidos políticos em democracia. Há cem anos de análises destes fenómenos, por isso não se trata de novidade nenhuma, mas como Michels não escreveu sobre o PS português talvez valha a pena olhar com atenção o que lá se passa, medidas todas as distâncias. E como o que lá se passa é relevante para a vida cívica portuguesa, muito para além das fronteiras das sedes partidárias – mais do que isso é um verdadeiro problema nacional da democracia e de Portugal que se reflecte na vida concreta de milhões de cidadãos –, encolher os ombros e dizer que é o “costume” nos partidos, “eles lá que se arranjem” é irresponsável.

Comecemos por uma nota prévia, um aviso a tempo por causa do tempo. Falar do processo do PS é essencialmente falar de António José Seguro e dos seus apoiantes, porque são eles com a sua maioria nos órgãos do PS que têm condicionado tudo. São eles os autores relevantes em todo o processo, a que apenas o acto inicial de contestação da liderança de António Costa pode ser comparado. E acrescente-se aquilo que todos sabem e que todas as consultas de opinião dizem de forma tão expressiva: para os portugueses, entre António Costa e António José Seguro vai uma diferença abissal em termos de opinião pública. Pode ser engano, pode ser um efeito mediático, pode ser tudo, mas existe sem ambiguidades. Os dois não são iguais, mesmo que a luta fosse apenas por estilos de liderança, que não é. Podem não ser claras e estar escondidas em muita retórica redonda, mas há diferenças programáticas, há diferentes sensibilidades e pulsões que apontam para caminhos distintos. O próprio Francisco Assis, apoiante de Seguro, enunciou no PÚBLICO um conjunto de perguntas que marcam diferenças tácticas e estratégicas. Mas não é essa a matéria deste artigo, ficando para outra altura essa análise.

Agora trata-se de compreender a natureza aparelhística nua e crua da resposta de António José Seguro à contestação de Costa e o que ela nos mostra sobre o estado dos maiores partidos portugueses, visto que se trata de uma reacção que não é distinta entre PS e PSD, só que agora se revela em todo o seu esplendor no PS. Já há muito escrevi aqui que, se António Costa ou Rui Rio contestassem as actuais lideranças, o seu prestígio social de pouco valia face ao acantonamento de aparelhos que se defendem até à última, mesmo que isso signifique perder eleições, desde que os seus poderes internos não sejam postos em causa, o que também significa o seu emprego. Na altura, referi que, mesmo assim, seria mais fácil essa contestação ser vitoriosa no PS do que no PSD. E, embora surpreendido pelo catálogo absurdo de truques que Seguro tem tirado da manga, continuo a achar que no PSD seria muito mais duro, porque há poder e a ruptura violenta do partido com a sua história, programa, e ideologia, logo com o seu eleitorado, tem facilitado a degenerescência aparelhística.

O que mostra à evidência o que Seguro e os seus têm feito no PS é algo que muitas vezes se compreende mal no aparelhismo: é que acima da força do partido e das suas oportunidades eleitorais de aceder ao poder, acima do “cheiro ao poder”, está o controlo interno do aparelho. Seguro não hesitou um segundo em castrar o PS por vários meses, numa altura crítica para a vida pública portuguesa, para adiar um confronto que pressentia ser-lhe desfavorável, arregimentar as suas tropas e encontrar uma panóplia de truques para tentar obter vantagem. E Seguro sabe, e se não sabe não está lá a fazer nada, que, se sair vitorioso deste confronto nestas condições viciadas, não só muito dificilmente ganha as eleições em 2015, com um partido esfrangalhado e um líder recusado pela opinião pública, como, se as ganhar, é para começar no dia seguinte a negociar com o PSD. Corre, aliás, o risco, que no PSD também se corre a um prazo mais dilatado, de criar condições para as primeiras cisões a sério nos partidos do “arco de governação”.

Mas ele está-se positivamente a “marimbar”, desculpem o plebeísmo, para o PS, para o Governo, para o país. Ele pensa nele, na confortável posição a que pensava ter chegado, de “fazer de morto” e receber algumas migalhas do poder a prazo. Preveniu-se blindando os estatutos de uma forma inconcebível, que o tornam inamovível e lhe permitem agora este esbracejar de “iniciativas” tipo vale tudo. E aqui Costa e muita gente do PS que lhe deu uma votação albanesa (como Sócrates teve, ou no PSD, Santana Lopes), assente em todos os equívocos, tem sérias responsabilidades.

Se olharmos as diferentes propostas de Seguro, elas são tão assustadoras na sua irresponsabilidade que permitem ter um mais que justificado receio de o ver alguma vez à frente do governo. É a proposta de redução do número de deputados, que sempre pôde fazer e não fez e faz agora para cair no agrado da opinião antipolíticos. É o uso do anti-socratismo do mesmo exacto modo que Paulo Rangel e Nuno Melo usaram na campanha das europeias. E a oscilação da esquerda para a direita, da voz grossa e da voz fina, para propor tudo sem nexo, nem coerência. Uma das coisas que caracterizam o aparelhismo é que não tem política, nem ideologia: é o que for quando convém.

Depois há as propostas de recurso pouco pensadas e preparadas. Veja-se a proposta de “directas para o candidato a primeiro-ministro”, que quando foi apresentada não implicava a queda do secretário-geral, mas uma liderança bicéfala, com Seguro inamovível à frente do PS. Seguro veio mais tarde corrigir e admitir que concorreria com Costa a “candidato a primeiro-ministro” e que, se perdesse, demitir-se-ia de secretário-geral. Mas trata-se apenas de um acto de vontade pessoal, que deixa intacta a confusão institucional em que o PS passa a entrar com diferentes processos de legitimação para lugares distintos. Haverá eleições para “candidato a primeiro-ministro”, depois eleições para secretário-geral, depois congresso, com eleitorados diferentes e sem garantia de consistência nos resultados. Uma trapalhada.

Aliás, Seguro actua aqui com má-fé. Propôs as directas longínquas no tempo para adiar o confronto, fê-lo sem estas terem legitimidade estatutária, sem regulamento aprovado, apresentou depois um regulamento que vicia todas as regras de controlo do processo eleitoral, a começar pelo aspecto crítico dos cadernos. Afastou-se do modelo francês, cuja fórmula é muito mais aberta à sociedade, e mais responsabilizante para quem se inscreve, e permitiu que de imediato começasse a arregimentação, “em segredo” como dizia o email, usando a rede da Associação Nacional de Farmácias. E se o mesmo for feito com os sindicatos da UGT, alguns que só têm quadros dependentes do seu salário como “dirigentes sindicais” da hierarquia da central? E por aí adiante. E quem é que quer levantar uma guerra de cadernos eleitorais em vésperas de eleições, parecendo apenas interessar-se por questões menores, com toda a gente a cair-lhe em cima por provocar incidentes, mesmo que tenha toda a razão?

Seguro explicou muito bem o que fez até agora: colocou a sua “liderança” “dentro de um armário”, de que só o desafio de Costa o fez sair. Não criticou o memorando, não criticou o Governo de Sócrates, não apresentou as propostas que apresentou agora, como a redução do número de deputados, não disse o que queria porque se sentia coagido a manter a “unidade” do PS. Talvez porque a “liderança” dificilmente se manifesta quando se está dentro de um armário, a não ser para as portas do armário, as cruzetas, as gavetas, as roupas, ou as louças, ou seja lá o que for que esteja dentro do armário, ninguém lha reconheceu. Por isso, Seguro conduziu o PS a um impasse político nas últimas eleições europeias e tornou-se o líder do PS mais desejado pelo PSD e o CDS, por razões que se percebem bem de mais.

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