Leonard Liggio e a tradição da liberdade

Leonard Liggio recordou-nos que um dos principais contributos para impedir o “Estado total” foi dado pelo cristianismo.

A morte de Leonard Liggio, na passada terça-feira, com 81 anos, entristeceu todos os que tiveram o privilégio de o conhecer e que com ele partilhavam o estudo da tradição da liberdade sob a lei. Em Portugal, Liggio era um participante regular do Estoril Political Forum, os encontros internacionais de estudos políticos promovidos anualmente pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa.

Era também um colaborador frequente da revista Nova Cidadania, publicada por aquele Instituto. A última edição da revista (Ano XV, No. 54, Outono-Inverno 2014) inclui, aliás, um artigo de Liggio intitulado Liberalismo e Cristianismo. O texto é uma excelente expressão do posicionamento intelectual de Leonard Liggio e de uma das áreas que mais o apaixonavam, o da relação entre liberdade e religião.

Leonard Liggio pertencia a uma velha escola intelectual – outrora respeitada, hoje ameaçada pelo conformismo politicamente correcto – que associava a tradição da liberdade à mensagem e tradição cristãs. Alexis de Tocqueville e Lord Acton são duas referências cruciais dessa escola, embora muitas outras pudessem ser citadas. Liggio, que era católico tal como Tocqueville e Acton, foi um dos mais empenhados continuadores recentes dessa tradição.

É uma tradição que enfrenta muitos preconceitos. Na Europa continental, a religião tende a ser colocada em oposição à liberdade e esta é interpretada como uma invenção moderna – em regra associada à funesta revolução francesa de 1789. Por essa via, a liberdade é também associada à emergência do centralismo estatal, em que ao Estado é atribuída a missão de dirigir e comandar a sociedade em função de um propósito unificador – em regra a chamada “modernização”, mas também a “secularização”, ou a “libertação através da razão”, ou a igualdade, ou qualquer outro “nobre” propósito unificador. Basicamente, por esta via, o Estado abandona a função de proteger a liberdade de usufruto de modos de vida espontâneos, não centralmente comandados, e tende a transformar-se num “Estado total”.

Leonard Liggio pensava que todos esses preconceitos continentais partiam de um erro original: a crença de que a liberdade é uma invenção moderna, em ruptura com a tradição cristã medieval. Daí as suas insistentes contribuições sobre temas relacionados com a tradição pré-moderna da liberdade e com o contributo crucial do cristianismo para a emergência do conceito de liberdade da pessoa e da sua consciência.

Este é, aliás, o tema do artigo de Leonard Liggio na última edição de Nova Cidadania. Trata-se de uma longa recensão ao livro de Ralph Raico The Place of Religion in the Liberal Philosophy of Constant, Tocqueville, and Lord Acton. Liggio enfatiza a relevância da obra para a redescoberta de uma tradição liberal clássica que procura limitar o poder do Estado, em vez de ver no Estado a fonte e o motor da chamada “modernização” da sociedade civil. Constant, Tocqueville e Acton foram certamente grandes expoentes dessa tradição, entretanto caída em desuso.

No centro das preocupações dos três autores, recorda Liggio, estava a limitação de um novo poder central – o Estado moderno – que reunia numa única sede central poderes antes difusos e partilhados entre várias sedes plurais (em regra, de natureza aristocrática). Esta preocupação de limitação do poder estava inscrita na tradição da liberdade e era sobretudo associada à doutrina da separação de poderes preconizada por Montesquieu e retomada pela Constituição norte-americana de 1787-8.

Mas a separação de poderes, recorda Liggio, sendo crucial, trata sobretudo da esfera do Estado – não limita necessariamente essa esfera por outras que lhe sejam exteriores e que imponham limites ao alcance do poder do Estado. Esta limitação externa requer o reconhecimento da existência de esferas de actividade que são autónomas e estão para além do alcance da esfera política e estatal – que impedem um “Estado total”. Designamos hoje essas esferas por “sociedade civil”.

O reconhecimento da importância da autonomia e pluralidade da sociedade civil supõe, por sua vez, um entendimento pluralista da liberdade – para além dos tradicionais entendimentos rivais da liberdade como “libertação individual” ou como “participação colectiva”. O conceito de “sociedade civil” remete para a “difusão dos poderes” e para a existência plural de várias associações civis que estão fora e para além do alcance do poder político central. É a sociedade civil que impede a absorção de toda a vida social por um “Estado total”.

Leonard Liggio recordou-nos que um dos principais contributos para impedir o “Estado total” foi dado pelo cristianismo e pela sua exigência de liberdade da consciência, contra a obrigação política de “adorar os deuses da cidade”.

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