Júlia Pereira: “Nunca deixei de ser discriminada e o medo acompanha-me”

É a primeira dirigente transexual de um partido e integra as listas do BE em 8º lugar em Setúbal.

Foto
Júlia Pereira é a primeira dirigente transexual de um partido e integra as listas do BE em 8.º lugar em Setúbal Rui Gaudêncio

Preconceito, discriminação, medo. Apesar da “revolucionária” lei de identidade de género aprovada em 2011, o dia-a-dia de Júlia Mendes Pereira — como o de outros transexuais portugueses — ainda é feito assim. Com menos direitos, olhares desviados, comentários desagradáveis, cuidados de saúde incompletos, empregos recusados. A activista, primeira dirigente trans de um partido português, integra agora as listas do Bloco de Esquerda (BE) pelo círculo eleitoral de Setúbal. Não está num lugar elegível, mas acredita que isso não tira força à luta que quer travar.

Foi uma “longa luta” aquela que Júlia travou para garantir que o seu género era visto e respeitado. Sempre se projectou como mulher e cedo decidiu enfrentar as consequências de o assumir — um “acto de coragem” pelo qual, ainda hoje, não passa incólume. “Nunca deixei de me sentir discriminada e o medo acompanha-me diariamente”, confessou ao PÚBLICO a jovem de 25 anos. Foi a busca de um apoio político nesta causa que, em 2010, a levou a juntar-se ao Bloco, numa altura em que o partido estava a apresentar a proposta da lei de identidade de género.

Um grande salto qualitativo foi dado naquele ano de 2011: a lei número 7 cumpriu as directrizes internacionais e desburocratizou um processo que era demasiado longo e doloroso para quem o vivia. Mas, quatro anos volvidos, as normas internacionais mudaram e Portugal ficou para trás: por cá, ainda é exigido um diagnóstico de perturbação mental para que as pessoas trans vejam reconhecidos os seus direitos, uma exigência que Júlia considera “atentatória dos direitos humanos” dos transexuais.

Para a bloquista, “o procedimento devia ser baseado exclusivamente na autodeterminação”, como já acontece em países como a Argentina, Malta, Irlanda ou Dinamarca. Em vez disso, há em Portugal “um policiamento de género” e um processo clínico — que se prolonga por um mínimo de dois anos — obrigatoriamente avalizado pela Ordem dos Médicos: “É uma regra que mais nenhum país que conheça tem.”

Mesmo assumindo o número oito nas listas de Setúbal, longe de um lugar elegível (o BE tem, neste momento, apenas um deputado por aquele distrito), Júlia acredita ter uma palavra a dizer: como membro da mesa nacional do partido, envolveu-se activamente na elaboração do programa nas questões trans e nas áreas de justiça e igualdade. Um dia, gostava de imitar o feito de Anna Grodzka na Polónia — que, em 2011, se tornou a primeira deputada transexual da história da política europeia — e ter assento parlamentar. Mas, até lá, muito pode ser feito. Prioridades? A eliminação do diagnóstico de saúde mental e garantia de igualdade no acesso a serviços de saúde”, responde a também co-directora da Acção pela Identidade.

A diferença foi um problema em vários momentos da vida de Júlia. Inclusive na hora de procurar emprego: “Antes de me dedicar ao mestrado em Estudos Brasileiros que estou agora a tirar, passei mais de um ano a tentar encontrar trabalho e não consegui.” E este não foi um caso isolado: “A taxa de desemprego é elevadíssima entre a população trans.” É por casos discriminatórios como o de Júlia que muita gente não tem coragem de iniciar o processo clínico — e há mesmo quem o decida reverter depois de o ter concluído. É também por essas situações que a candidata quer lutar. "Ser visível é também ter mais medo. Mas se for inspirador para alguém, vale a pena.” (mais em p3.publico.pt)

Sugerir correcção
Ler 1 comentários