Cimeira Portugal-Angola continua marcada para Fevereiro

Eduardo dos Santos disse que, "com Portugal, as coisas não estão bem" e não há condições para parceria estratégica. Governo português mostra-se surpreendido e reafirma importância da relação estratégica com Angola.

O Presidente angolano discursou hoje no debate sobre o estado da nação
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O Presidente angolano discursou hoje no debate do estado da nação Siphiwe Sibeko/Reuters
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O Governo de Passos Coelho reafirma a importância da relação com Angola Nuno Ferreira Santos
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O líder parlamentar do Bloco de Esquerda diz que Portugal não se deu ao respeito Daniel Rocha

O Ministério das Relações Exteriores de Angola não tem “qualquer informação” que indique a alteração da data da 1.ª Cimeira Portugal-Angola, marcada para Fevereiro de 2014 e anunciada há dias, garantiu fonte da Presidência da República de Angola ao PÚBLICO.

Assim, por enquanto não haverá indicações de que a cimeira não se venha a realizar – esta é a resposta à pergunta que muitos colocaram depois de o Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, ter dito nesta terça-feira que o clima político actual entre os dois países “não aconselha à construção da parceria estratégica antes anunciada". 

No seu discurso sobre o estado da nação, José Eduardo dos Santos referiu-se a "incompreensões ao nível da cúpula" de Portugal.

"Só com Portugal as coisas não estão bem”, afirmou o Presidente de Angola frente à Assembleia Nacional, onde o seu partido, o MPLA, é maioritário e o reconduziu à Presidência. “Têm surgido incompreensões ao nível da cúpula e o clima político actual, reinante nessa relação, não aconselha à construção da parceria estratégica antes anunciada", especificou.

Antes realçara que “Angola tem relações estáveis com quase todos os países do mundo, com muitos deles tem uma cooperação económica crescente e com benefícios recíprocos” e que Angola se tinha tornado num destino de investimento estrangeiro, porque “o seu prestígio e a confiança dos seus parceiros está a crescer”. 

Clarificando as palavras de José Eduardo dos Santos, a mesma fonte angolana explicou que a “parceria estratégica”, algo que Angola terá com “apenas mais três ou quatro países” (como Brasil e Portugal), “implica uma relação mais estreita a todos os níveis, envolvendo projectos de cooperação no domínio político, diplomático, económico, cultural, desportivo, etc”. As parcerias estratégicas “são uma forma de materializar relações” que, por várias razões, “são privilegiadas em relação às que existem com outros países”.

A mesma fonte, que pediu para não ser identificada, garantiu que José Eduardo dos Santos não anunciou qualquer "corte de relações" com Portugal, “nem sequer o fim da prevista parceria estratégica". "Disse simplesmente que, no actual clima político, não era ‘aconselhável’ prosseguir com esse tipo de relacionamento especial. No quadro da parceria estratégica teriam já sido discutidos alguns projectos que eventualmente sofrerão agora um compasso de espera, enquanto o tal 'clima político' descrito não se esclarecer.”

Governo português surpreendido
As palavras do líder angolano surpreenderam o Governo português, que já emitiu um comunicado a reafirmar a importância da relação bilateral com Angola. "O Governo português tem defendido e praticado uma consistente actividade visando o estreitamento da relação especial com o Governo angolano. De facto, os laços particulares que unem os dois povos e as duas nações mais do que justificam essa prioridade da política externa portuguesa", diz o comunicado emitido pelo gabinete do primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho.

"Até por isto, e apesar da surpresa com que escutou as referências feitas hoje pelo senhor Presidente José Eduardo dos Santos à situação da relação entre os nossos dois países, o Governo reitera a importância que tem atribuído e continua a atribuir ao bom relacionamento entre Portugal e Angola e ao alcance estratégico para angolanos e portugueses desse bom relacionamento aos mais diversos níveis", refere o mesmo comunicado.

As palavras de José Eduardo dos Santos seguem-se a uma série de editoriais em que o Jornal de Angola dizia que o poder angolano estava a ser alvo de uma campanha em Portugal, depois da abertura de inquéritos na Procuradoria-Geral da República portuguesa visando figuras próximas do Presidente angolano.

Portugal e Angola têm previsto realizar, em Luanda, a primeira cimeira bilateral em 2014. A sua realização foi anunciada em Fevereiro passado pelo então ministro dos Negócios Estrangeiros português, Paulo Portas. A cimeira, inicialmente prevista para Outubro ou Novembro deste ano, foi adiada para Fevereiro do próximo ano.

No mesmo discurso, transmitido em parte pela Televisão Pública Angolana, José Eduardo dos Santos denunciou “campanhas de intimidação” levadas a cabo "persistentemente contra os africanos, porque não querem ter concorrentes locais e querem continuar a levar mais riqueza para os seus países”. O Presidente de Angola acrescentou: “Nós precisamos de ter empresas e empresários e grupos económicos nacionais fortes, eficientes, no sector público e privado. E de elites capazes em todos os domínios, para sairmos progressivamente da situação de país subdesenvolvido. E isto não tem nada a ver com corrupção, nem com desvios de bens públicos para fins pessoais. Há que separar o trigo do joio. E as nossas leis que regulam essas matérias são claras e devem continuar a ser aplicadas com rigor”, afirmou.

MPLA aplaude, oposição lamenta
O MPLA, pela voz do líder parlamentar Virgílio de Fontes Pereira, reagiu positivamente ao conteúdo das palavras do Presidente que classificou, em declarações à Lusa, de "realista" e "sensato". "Alguns sectores das elites portuguesas não têm historicamente compreendido o que se passa em Angola", acrescentou.

Também à Lusa os dois principais partidos da oposição angolana, UNITA e CASA-CE, criticaram o posicionamento relativamente a Portugal. Vitorino Nhany, secretário-geral da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), qualificou-o de retaliação contra Portugal. "Acredito que Portugal esteja a denunciar alguns actos de corrupção e para um Estado corrupto isto não cai bem, esta é a única conclusão que posso retirar da reacção do Presidente", afirmou.

Também Abel Chivukuvuku, antigo dirigente da UNITA e actual presidente do segundo maior partido da oposição, a coligação eleitoral Convergência Ampla de Salvação de Angola (CASA-CE), considerou que Portugal e Angola mantêm "relações imaturas". Em declarações à Lusa, disse: "Eu já comentei no passado sobre a natureza da relação Angola-Portugal, que considero uma relação imatura, porque temos níveis diferentes de desenvolvimento democrático e nem sempre percebemos que esse nível diferente de desenvolvimento democrático cria essas diferenças."

Já o ministro das Relações Exteriores, Georges Chikoti, ouvido pela agência de notícias angolana Angop, considerou que as relações com Portugal podiam ser melhores, mas têm surgido dificuldades que impedem o estabelecimento de relações estratégicas. Ao mesmo tempo, não deu informações que pudessem levar a pensar que a primeira cimeira bilateral Portugal-Angola, inicialmente anunciada para este ano e depois adiada para 2014, estivesse definitivamente comprometida. À Angop o ministro voltou a dizer que a cimeira tinha sido adiada e se realizaria em 2014.

Elogio e ataques
O Jornal de Angola, que nas últimas duas semanas publicou uma série de editoriais a condenar a atitude de Portugal relativamente a Angola, escreveu um editorial este fim-de-semana a elogiar a actuação do secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, Luís Campos Ferreira, durante a visita que realizou a Luanda na semana passada para precisamente preparar essa cimeira.

"O político português tratou de situar as relações Angola-Portugal no patamar da excelência e assim afastar quaisquer veleidades que possam afectar o seu bom andamento. Avançou mesmo que o objectivo da cimeira luso-angolana é o de 'agilizar, optimizar e criar um sentido estratégico' para a cooperação bilateral e a sua extensão a novas áreas de interesse mútuo", lia-se no editorial.

Dias antes, o jornal, que é público mas representa o órgão oficial do MPLA liderado pelo Presidente da República e funciona em ligação directa com a Presidência da República, tinha repetido críticas à Justiça portuguesa e aos media que responsabilizou por uma campanha contra Angola e os titulares dos órgãos de soberania.

As críticas vêm de trás e ressurgiram quando o semanário Expresso publicou em Novembro uma de várias notícias sobre a abertura de um inquérito-crime por indícios de fraude fiscal e branqueamento de capitais a pelo menos três altos responsáveis angolanos do círculo mais próximo de José Eduardo dos Santos: Manuel Vicente, vice-presidente de Angola e ex-director-geral da empresa petrolífera nacional Sonangol, o general Hélder Vieira Dias “Kopelipa”, ministro de Estado e chefe da Casa Militar da Presidência da República, e o general Leopoldino Nascimento “Dino”, consultor do ministro de Estado e ex-chefe de Comunicações da Presidência da República.

Meses depois, sairia uma notícia sobre a abertura de uma investigação ao procurador-geral da República de Angola, João Maria de Sousa, por suspeitas de fraude e branqueamento de capitais na alegada transferência para uma conta do Santander Totta em Portugal de 70 mil euros de uma empresa off-shore, que o próprio desmentiu em comunicado da PGR angolana. A notícia era seguida de novos editoriais em tom de ataque.

O fim dos investimentos?
Num deles, o Jornal de Angola defendia o fim dos investimentos em Portugal. Entre os investimentos de empresários angolanos em Portugal, e com maior peso, estão os investimentos da filha do Presidente, Isabel dos Santos, que, enquanto empresária tem reforçado a sua presença nos sectores da banca e das telecomunicações em Portugal, onde domina a Zon Optimus juntamente com a Sonae (dona do PÚBLICO), é accionista (via Amorim Energia) da Galp Energia e detém 19,%% do BPI, além de 25% do banco BIC (que adquiriu o BPN).

As palavras de José Eduardo dos Santos surgem numa altura em que o empresário angolano António Mosquito, dado como interessado no grupo que detém o Diário de Notícias, o Jornal de Notícias e a TSF, se prepara para concretizar a compra da maioria do capital da construtora Soares da Costa. Este será um dos grandes investimentos angolanos em Portugal este ano, numa fase em que as relações económicas entre os dois países têm vindo a estreitar-se, embora persistam algumas dificuldades.

Meses depois, de novo, ressurgiu o tom crispado do Jornal de Angola contra Portugal, motivado pela polémica criada em Portugal depois de o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Rui Machete, ter pedido diplomaticamente desculpa a Angola, quando questionado numa entrevista à Rádio Nacional de Angola (RNA) a propósito das investigações na PGR que disse poderem resultar de "um mal-entendido".

"Tanto quanto sei, não há nada substancialmente digno de relevo, e que permita entender que alguma coisa estaria mal, para além do preenchimento dos formulários e de coisas burocráticas e, naturalmente, informar as autoridades de Angola pedindo, diplomaticamente, desculpa, por uma coisa que, realmente, não está na nossa mão evitar", disse o chefe da diplomacia portuguesa, o que suscitou vários pedidos de demissão que, por sua vez, suscitaram um novo rol de acusações contra Portugal, visando em particular a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, que, logo a seguir a terem sido conhecidas as declarações de Machete, confirmava ainda estarem pendentes no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) “vários processos em que são intervenientes cidadãos angolanos, quer na qualidade de suspeitos, quer na qualidade de queixosos”. 

Na visita que realizou a Luanda, Luís Campos Ferreira minimizou a crispação sentida nos editoriais e, numa alusão à entrevista do seu ministro, disse que "não era necessário apaziguar os ânimos", ao contrário do que reconhecera o próprio ministro para justificar as suas declarações à RNA. Horas antes, numa entrevista à RTP, o primeiro-ministro falou noutro tom. Pedro Passos Coelho entendeu as palavras do seu ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros à Rádio Nacional de Angola como uma tentativa de "apaziguar a relação com um país muito importante para Portugal". 

Na terça-feira, o presidente da Câmara de Comércio e Indústria Portugal-Angola, Carlos Bayan Ferreira, antecipou à Lusa que os empresários portugueses e angolanos vão continuar a investir nos dois países, apesar das “lutas políticas” e das perturbações diplomáticas. “O empresário português não vai alterar a sua política de investimento devido a estas declarações”, afirmou. E acrescentou: “O caminho de futuro é o reforço dos investimentos, e os empresários portugueses vão continuar a investir em Angola e os angolanos em Portugal.”

Para o empresário, a declaração de José Eduardo dos Santos “é uma chamada de atenção para dizer que há que corrigir algumas coisas e reforçar as relações, porque o interesse dos empresários angolanos em investir em Portugal e de portugueses a investir em Angola é real, e por isso há que dar toda a força ao reforço do relacionamento entre os dois países”.
 
Por seu lado, o presidente da Associação Industrial de Angola (AIA), José Severino, mostrou-se preocupado com o incidente diplomático. “Portugal, pelos antecedentes históricos, pelas relações, devia estar a jogar um papel mais importante”, afirmou. Mas deixou o assunto “para os políticos”: “Estes problemas não são bons nem para Angola, nem para Portugal.” 


Reacções em Portugal
Em Portugal, todos os partidos reagiram às declarações de José Eduardo dos Santos. O líder do PS, António José Seguro, emitiu um comunicado manifestando “grande preocupação” com “a crescente tensão diplomática que, nos últimos dias, se criou entre Angola e Portugal”. “A normalidade do relacionamento existente entre Portugal e Angola foi perturbada por incidentes e declarações que podem pôr em causa o excepcional trabalho desenvolvido pelos agentes económicos de ambos os países, com vantagens mútuas e amplamente reconhecidas”, declarou. Seguro acusou o Governo português de contribuir para “uma lamentável deterioração das relações bilaterais, afectando a dignidade e os interesses [de Portugal]” e apelou às autoridades angolanas e portuguesas para que fizessem um “esforço de normalização política”.

Já o deputado comunista António Filipe defendeu à Lusa a “salvaguarda” das relações bilaterais, após as “declarações inaceitáveis” do ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, “que revelaram enorme falta de respeito para com a separação de poderes existente em Portugal”.

Preocupação foi a palavra escolhida pelo líder parlamentar do CDS, Nuno Magalhães, para comentar o anúncio do Presidente angolano. "Fico preocupado, é preciso reconstruir a relação que é boa entre os dois Estados", afirmou, reiterando o tom de prudência que o partido liderado pelo ex-ministro dos Negócios Estrangeiros tem mostrado sobre Angola. "Não vou dizer nada que prejudique os portugueses que vivem em Angola e as empresas que lá trabalham", disse Nuno Magalhães. 

O CDS foi o único partido que ficou em silêncio quando foi noticiado que Rui Machete tinha pedido desculpas a Angola por causa das investigações a empresários angolanos.

Pela voz do PSD, o vice-presidente da bancada, António Rodrigues, acusou "comentadores" de pretender estragar as relações com Angola. "Quem é que tem interesse em estragar as relações entre os dois Estados?", questionou o deputado, referindo-se depois a "comentadores" que fazem declarações "desestabilizadoras", embora se tenha escusado a nomear alguém. António Rodrigues sublinhou a importância de "normalizar relações" com Angola e desejou que a cimeira bilateral prevista se venha a realizar no próximo ano.

Para Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, “Portugal não se deu ao respeito e foi desrespeitado por Angola”. O bloquista falava aos jornalistas no Parlamento, à saída de uma reunião com membros do Governo para a apresentação das linhas gerais do Orçamento do Estado. O deputado do PCP Paulo Sá também foi questionado sobre o mesmo assunto, mas não se quis pronunciar.
    

Rafael Marques diz que é um golpe estratégico
Para o jornalista e activista Rafael Marques, crítico do regime, esta foi “apenas uma ameaça” do Presidente angolano, que não tem interesse na cimeira. “A cimeira tem mais de vontade portuguesa do que angolana.” Tratou-se de um golpe estratégico para “desviar as atenções sobre os problemas da corrupção do seu Governo”. “Por exemplo, amanhã [quarta-feira] a Conta Geral do Estado será aprovada sem que a Presidência tenha feito a prestação de contas, assim como a maioria dos ministérios, conforme exige a lei.”

Por outro lado, acrescenta, o regime angolano “nunca esteve tão dependente de Portugal como hoje”. “Os principais gestores das fortunas angolanas, incluindo a de Isabel dos Santos, são portugueses. O Presidente falou da boca para fora. Os grandes contratos nacionais com o exterior passam por escritórios de advogados em Portugal, assim como as ligações financeiras de Angola com o exterior passam por Portugal.”

Já o professor universitário e analista em relações internacionais angolano Belarmino Van-Dúnem lembrou à TPA que esta foi a primeira vez que o Governo angolano se pronunciou oficialmente sobre “esta tensão” (provocada pelas declarações de Rui Manchete). Fê-lo “muito bem, numa atitude de legitimidade”.  

O Presidente angolano foi claro ao dizer “que não existem condições para se dar continuidade à parceria estratégica entre Angola e Portugal” e, para Van-Dúnem, “deste ponto de vista é real, porque não é confortável para os empresários angolanos continuarem a investir em Portugal, não é confortável para o Estado angolano continuar este relacionamento, quando existe esta tensão do ponto de vista público. Não existe aquilo a que se chamaria o bom- nome”. A criação da imagem, continuou, “é essencial para o desenvolvimento das relações entre os Estados” e o professor responsabiliza “uma imprensa portuguesa” por “alguma atitude deliberada de manchar ou pelo menos fragilizar a imagem do Estado angolano”, algo que “tem influência directa naquilo que são as relações económicas”.  Conclui que o Estado angolano não quer interferir no funcionamento das instituições democráticas, quer “simplesmente ter tratamento igual”. com Lusa
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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