Honradez

A situação é muito clara: uma forte maioria sociológica aspira por Costa, dentro e fora do partido.

Chapelada electrónica. A lenta cozedura que agora se iniciou no PS deu já dois resultados, um negativo, outro positivo. O negativo está a ser o cristalizar de posições, melhor dizendo o crispar de olhares e punhos, fechando as portas à razão e à tolerância. Tribos políticas agregam-se por emoções e não se dissolvem em quatro meses. Treinam-se mosqueteiros do cardeal, para defrontarem mosqueteiros da rainha. O positivo está a ser a lenta definição dos comentadores e fazedores de opinião: começa a ser claro que a direita convencional está com Seguro, por recear Costa e o terreiro que a sua popularidade pode varrer. Clarinho, clarinho, será sempre melhor.

A situação é muito clara: uma forte maioria sociológica aspira por Costa, dentro e fora do partido. A máquina, minuciosamente planeada durante anos pelas últimas bancadas de São Bento, matematicamente produz decisões que espelham a proporcionalidade da divisão orgânica. Os estatutos, alterados em comissões nacionais complacentes ou distraídas, blindaram as lideranças. Órgãos jurisdicionais internos escudam-se na imprevisão estatutária. Com a segurança de quem tutela a sua maioria, obediente pelo pavor do que receia perder com a mudança, surge a proposta de eleição para um cargo inexistente, com o engodo da retirada em caso de derrota, tal como fez Cavaco a Seguro, quando lhe acenou com eleições antecipadas. Tempera-se com o sal de uma demagógica redução do números de deputados para a populaça aplaudir e argumenta-se com a suposta similitude com eleições primárias abertas a todos para escolha de líderes socialistas na França e Itália, como se do mesmo contexto se tratasse. Preparado o empadão, serve-se frio ou requentado, com quase quatro meses de espera.

Tal como aqui afirmámos há semanas, as coisas estão feias no PS e vão ficar ainda pior. À saída da Comissão Nacional de Ermesinde duas valorosas militantes (ou simpatizantes), vestidas com a camisola da selecção, assediaram Costa e apoiantes. O ambiente carnavalesco registado pelas câmaras tem efeito demolidor na política, juntando todos no mesmo saco, abrindo espaço ao populismo justicialista.

Quando aqui se apontava o eventual risco de chapelada, mal sabíamos como ela agora se apresenta, no século vinte e um. Não já com votos numerosos dentro do chapéu dos cabos eleitorais, mas com o sofisticado processo de recurso a redes corporativas. Agora foram farmacêuticos que conclamaram na rede respectiva o apoio a Seguro. Uma das conclamantes, dirigente nacional do PS. Pior ainda: citada a pronunciar-se a presidente do Partido e um dos secretários nacionais lavaram as mãos como Pilatos, com o argumento de se tratar de uma posição individual. (Agora se percebe o verdadeiro sentido de algumas escolhas para candidatos municipais). Amanhã serão associados de agremiações apolíticas a congregarem à participação grátis numa singular escolha de governo. Pouco faltará para vermos um futuro canal por cabo a recomendar o mesmo. Mais tarde serão homens de mão de partidos agnósticos a Costa a colaborarem, inscrevendo-se graciosamente para eleger um “candidato a primeiro-ministro”. Recusa-se o que possa aumentar as garantias de independência do processo, retirando ao contraditório a possibilidade de arguir a prática de actos malévolos e quem tem a autoridade interna não verbera estes procedimentos.

Austeridade que mata. Juncker foi eleito presidente da Comissão, seguindo-se as fotografias com os Judas do passado. Os do Reino Unido preparam defesa contra previsível derrota interna, mostrando músculo em Bruxelas. Ainda bem. Sobretudo pela companhia húngara que escolheram. Diz-me com que andas dir-te-ei quem és. Doravante ninguém terá ilusões e aberto o precedente será mais fácil começar a preparar a lenta saída dos insulares auto-insularizados. O nevoeiro de Bruxelas começa a clarear. Socialistas e sociais-democratas defenderam o seu ponto de sempre: os resultados das eleições para o Parlamento Europeu tinham que ser respeitados. Em Portugal, socialistas e democratas-cristãos acompanharam, como lhes cumpria. Destaco o papel de Rangel, que não hesitou desde a primeira hora. Estão agora reunidas condições para que o governo se deixe de posições “panhonhas” e exija o que o FMI já escancarou: que a austeridade mata e que só o crescimento cura e dá emprego. Renegociar a dívida passou de ideia proscrita a solução indispensável. Quem mostra e quer cumprir tem o direito de exigir que o ajudem a respeitar compromissos. Por que espera o Governo para adoptar mais firmeza e até autoridade, nas suas posições em Bruxelas? Ou aguarda que o Tribunal Constitucional o faça, uma vez mais?

Miguel Gaspar, o meu amigo futuro. Mal conheci Miguel Gaspar, falei um par de vezes com ele, apenas. Devo-lhe o convite para ocupar esta página. Passei a ler com atenção o que ele escrevia, de tão grande qualidade e força, temperado com humor subtil, embora desenganado. Esperava tê-lo como amigo, no futuro. Uma doença que ceifa intelectuais, como a pneumónica ceifou jovens adultos no final da Grande Guerra, levou-o quase de súbito. Ficámos a conhecê-lo melhor por um generalizado obituário bem fora do comum. Sentido e justo. Ao longo da vida perdi amigos da minha geração: companheiros de Coimbra, como José Azeredo Pais, em emboscada no leste de Angola, Adriano Correia de Oliveira aos quarenta e Helder Martins Gonçalves aos sessenta; profissionais distintos como Francisco Gonçalves Pereira, Ilda Carvalho, Margarida Bentes e Fernando Pais, há meia dúzia de anos; e muito recentemente, um príncipe da política, José Medeiros Ferreira. Saudade agravada pela injustiça irracional das perdas prematuras. Recordar antigos e futuros amigos não é pieguice, mas respeito. Ficando cada vez menos, honrando a sua memória, aumentamos as exigências da nossa honradez.

Professor universitário reformado

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