Há quem olhe para o Governo com expectativa ou frustração, mas o povo está sereno

Em que medida se alterou o quotidiano e a vida das pessoas, seis meses depois da posse do Governo socialista, apoiado pelos partidos à esquerda? Há quem elogie o pouco que mudou e há quem critique o pouco que mudou. Mas a crispação do debate político não se sente na rua, onde a política faz efeito.

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Maria Fernanda preferia o anterior Governo, apesar dos seus defeitos Enric Vives-Rubio
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João Gil gosta mais deste Governo Enric Vives-Rubio

Aos cinco anos, João Gil já trabalhava. Enquanto acabava a quarta classe, como se chamava na altura, ia com o pai, que era ardina, vender jornais para a baixa de Lisboa. Começavam às seis da manhã. Agora, aos 72, sentado diante de uma das mesas da Praça Paiva Couceiro, em Lisboa, vai desfiando memórias, a cabeça fresca, um interesse vivo por política, uma fidelidade ao PCP. Ainda que a sua reforma só tenha aumentado umas dezenas de cêntimos com o actual Governo, não tem dúvidas de que prefere o ambiente que se vive agora ao que existia quando a direita governava o país: “O anterior Governo nunca me deu nada.”

À volta, vários grupos jogam às cartas, João Gil está só a ver. Ouve-se o chilrear dos pássaros, está um dia de sol em Maio. Apesar do calor, está de casaco de fazenda, uma grossa camisa de flanela por baixo. De cigarro na mão, voz rouca, sobrancelhas grandes, vai continuando a cruzar as memórias da sua vida com o actual período político que o país atravessa.

Conta que, depois de acabar a quarta classe, foi fazer um curso de soldador. Foi o que fez toda a vida. A memória só lhe falha para as contas, por pouco. Um pouco que acaba por ser muito, porque representa a diferença na reforma que recebia antes e que passou a receber agora, depois de este executivo ter anunciado o descongelamento das pensões. “Recebia 388, 389 euros, agora recebo 401, 402. Ainda não tomei bem atenção.”

Subindo a colina, muda a perspectiva. Maria Fernanda tem em comum com João Gil a idade: 72 anos. E uma forma de encarar a política que se distingue do “preto ou branco” dos frente-a-frente televisivos. A sua preferência política é o PSD e, por isso, apesar dos “defeitos” do anterior Governo, preferia-o a este socialista. Em frente à igreja virada para o miradouro da Graça, admite, porém, que há uma medida deste Governo de esquerda que a deixou muito satisfeita: a reposição dos feriados, incluindo os religiosos. Não tem problemas em admitir que foi curioso terem sido tirados pela direita e repostos pela esquerda. “Quando o outro Governo os retirou, senti-me desiludida.” Apesar de considerar “óptimo” que agora tenham sido repostos, tal não é suficiente para ser pôr do lado do executivo de António Costa.

João Gil, já o sabemos, prefere o actual Governo. Mas queixa-se que o aumento da sua pensão é pequeno, claro. A companheira, com quem vive, recebe o mesmo. “Não gastamos em nada que não faça falta”, diz. Apesar desta queixa, acredita que o executivo de António Costa ainda pode fazer mais. Argumenta que, mesmo que o dinheiro que repuseram seja pouco, o sentido das políticas é diferente das do governo anterior. Acrescenta que a direita só falava em “retirar, retirar, retirar” e que agora já se fala em repor, mesmo que seja pouco. As taxas moderadoras, por exemplo, baixaram 50 cêntimos nos centros de saúde e 2,6 nas urgências. João Gil não tem dúvidas: “Este Governo é melhor!”, exclama.

Além disso, é um executivo apoiado pelos comunistas, o que lhe agrada. Sempre votou PCP. “E a minha companheira também”, diz. Só começou a ter consciência política, depois de vir da guerra colonial – esteve em Moçambique três anos e nove meses. Um ano ou dois após o regresso em 1967, já não sabe precisar, levaram-nos a dois “comícios clandestinos” do PCP. “Percebi que era neste partido que me revia”, recorda. “Sem os comunistas, o Costa [António Costa, primeiro-ministro] não estava no poleiro. Se não houvesse este acordo, quem ganhava eram os outros [a coligação de direita] outra vez. O que é que eles fizeram por nós? Nada.”

Maria Fernanda acaba de sair da igreja, veio de uma oração. Vai lá praticamente todos os dias. Diz que é católica, mas que política não é o seu assunto preferido. De cabelo branco, óculos, uma camisola florida e um fio ao peito, conta como vai passar o Corpo de Deus, o primeiro feriado retirado a ser celebrado. Este ano calha a 26 de Maio. “O Corpo de Deus é maravilhoso, porque é o que tomo cada vez que vou à eucaristia. No dia 26, vou à procissão e à missa, se Deus quiser.” Em frente, no miradouro da Graça, turistas e não só aproveitam o sol na esplanada com vista para Lisboa.

Um silêncio e “dois tostões”

Com o bom tempo, também no jardim da Alameda, não faltam grupos a jogar às cartas. Ninguém quer falar, dar o nome, começam todos numa galhofa quando o assunto é política. “O Governo deu-nos mais dois tostões e agora ninguém quer falar contra”, dizem, entre risadas, enquanto baralham as cartas. Ao lado, num banco, uma reformada de 77 que não quer revelar o nome, diz apenas que passou a receber mais um euro na reforma. “Um euro?”, pergunta, indignada.

Ao lado, de pé, a ver o jogo dos amigos, está Fernando Santos. É funcionário público, trabalha no Instituto Nacional de Estatística e, sem revelar quanto recebe de ordenado, diz apenas que não foi abrangido pelos cortes do anterior Governo. O limite mínimo a partir do qual os salários foram afectados no anterior executivo foi 675 euros, entre Janeiro e Maio de 2014. A medida foi, porém, chumbada pelo Tribunal Constitucional, o que levou o Governo de Passos Coelho a aplicar os cortes do executivo de José Sócrates, a partir dos 1500 euros.

Fernando Santos considera que o Governo liderado por António Costa “está a ser melhor” do que pensava: “Achei que não iam fazer nada de jeito, mas estão a conseguir cumprir o que prometeram, que é repor o dinheiro a quem retiraram.” A sua maior expectativa agora é que o Governo avance com a medida das 35 horas de trabalho para todos os funcionários públicos. Disso é que está à espera.

Na restauração, também há ansiedade: para José Costa, 47 anos, sócio de uma pastelaria na Morais Soares, a descida do IVA de 23% para 13%, prevista para 1 de Julho, já devia ter acontecido, e devia abranger mais do que serviços de alimentação e algumas bebidas. “Estas pequenas empresas estão todas com a corda na garganta. É uma medida que já vem tarde, devia ter sido logo quando mudou o Governo. António Costa veio cá em campanha e prometeu-o aqui, com um aperto de mão ao meu sócio”, recorda.

Na montra estão exibidos os menus, as promoções, as letras anunciam pão quente a toda a hora. O negócio já teve dias melhores, admite José Costa. “O problema não é a falta de trabalho, são as despesas, o material que compramos, a concorrência, não aumentamos os preços...” Prefere não se pronunciar sobre o desempenho do Governo. Mas dá o benefício da dúvida: “Vamos ver.

Sobressaltos vários são os que se têm sentido no sector da Educação. Já no anterior executivo foi das mais polémicas pastas, sobretudo por sucessivas confusões em torno da colocação de professores, mas não só. Também o actual ministro da Educação não tem escapado ileso. Os pais queixam-se da “instabilidade” no sector.

Ana Margarida Ramos tem três filhos: dois meninos no 1.º e no 6.º e uma menina no 4.º ano. Os filhos do 4.º e do 6.º estavam a contar fazer exames. A menina soube, no 1.º período, que afinal não ia fazer; o rapaz no 2.º. O agrupamento de escolas de São Julião da Barra foi um dos poucos que decidiu, no entanto, fazer na mesma provas a Português e Matemática. “Que [os governos] tomem novas medidas, sim, mas para o próximo ano, não a meio. Cria instabilidade a pais, alunos e professores.”

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