Governar a brincar

O Governo brinca com o Povo a anunciar que até final do ano esgotará a lista de utentes sem médico de família, como brinca com os 400 profissionais que pensa atrair para o activo com apenas um terço do ordenado.

Desde há muito que, mesmo num país onde o improviso é apreciado, os governos apresentam programas, elaboram planos e cingem-se a orçamentos. Com recursos finitos e infindas necessidades, os bons governos fazem escolhas, sacrificam umas acções a outras para melhor servirem o interesse público. Neste segmento final da sua vida o nosso actual Governo, com eleições pela frente, oculta o seu programa, se é que o tem, promete coisas impossíveis, fumega pelo nariz, à espera de conseguir criar a nuvem de fumo que o esconda dos seus ásperos julgadores.

No Inverno passado, rebentou uma crise nas urgências. Bem tentou o Governo disfarçar com o “frio extremo” a incapacidade de atender e escoar doentes nos hospitais. Só então deve ter percebido que tudo tem causas e consequências. A acorrência inusitada às urgências não era um fenómeno da natureza, mas a natural consequência de graves restrições que impôs na saúde, não substituindo pessoal, desmantelando equipas, encerrando camas, congelando novas unidades de saúde familiar (USF) e arrastando os pés na criação de unidades de cuidados continuados. O resultado foi catastrófico: sem novas USF, o aumento natural da morbilidade embateu na barreira dura de urgências desmunidas de gente experiente, forradas de tarefeiros, pessoal desorientado correndo de um lado para o outro sem poder acorrer a tudo. Serviços atravancados de macas e camas, escoamento impossibilitado por falta de leitos, e de cuidados continuados. Casos ligeiros amontoados com casos graves, esperas infindáveis, doentes com fome, gemendo de dores, reclamando um olhar, um pouco de água, uma atenção. Foi preciso que surgisse uma câmara indiscreta para que o País conhecesse a dimensão do inferno.

Com dez meses ainda pela frente esperava-se que o Governo acordasse. Sabia existirem especialistas recém-graduados, instalações disponíveis, vontades e propostas de candidaturas de médicos de família para criação de USF. Que misterioso embargo o impediu de, em tempo útil, preparar planos de contingência para o que já vimos em anos anteriores, uma eventual onda de calor no verão e outro potencial episódio dantesco no Inverno? Passado o pico da crise, depois de Fevereiro, o Governo relaxou.

Até que alguém revelou que no ano em curso apenas uma USF havia sido criada, confirmando a arrefecimento da execução de uma medida que todos, até a Troika, haviam recomendado. Chegou a Oposição com seu programa de governo. Propõe a retoma da política de criação de unidades familiares, cem ao longo de quatro anos. Programa modesto, dando médico de família a pouco mais de quinhentos mil cidadãos hoje sem cobertura, implicando mobilizar quase 800 médicos, dos quais apenas um quarto seriam novos diplomados. Investimento relativamente pequeno, em parte elegível para apoio comunitário. Medida pautada pelo rigor orçamental, sem falsas promessas, exequível e ao alcance dos nossos meios, desde que cuidadamente preparada. A proposta da oposição é conhecida ao fim da manhã.

De tarde, no debate parlamentar era urgente responder. Contas passadas nas costas de um envelope, o Primeiro-Ministro, categórico, ajudado pela sua magnífica colocação de voz, promete até final do ano esgotar a lista dos 1,2 milhões de Portugueses alegadamente sem médico de família, para tal reintegrando no activo 400 médicos recentemente reformados.

Vamos a contas: admitamos que o Governo mobiliza mesmo esse número de médicos, esqueçamos por agora os enfermeiros, o pessoal administrativo, as pequenas obras e o mobiliário e outro equipamento necessário e usemos uma média de três consultas por habitante/ano. Cada médico reformado teria que realizar 9 mil consultas num ano, novecentas por mês, descontando férias e feriados, 40 por dia. Já imaginaram? Num dia de seis horas laborais, com intervalo de dois minutos entre consulta, sem perdas de tempo nem idas ao WC, cada médico poderia atribuir a cada doente apenas 7 minutos. Tendo que cumprimentar o doente, registar os dados da consulta no computador, emitir a prescrição, talvez restasse 1 minuto para a anamnese. Teria que dispensar a observação. Uma verdadeira epopeia que colocaria a medicina nacional nos píncaros da competitividade mundial. Claro que tudo isto é a brincar. Eu brinco com o leitor, como o Governo brinca com o Povo a anunciar que até final do ano esgotará a lista de utentes sem médico de família, como brinca com os 400 profissionais que pensa atrair para o activo com apenas um terço do ordenado. Um governo brincalhão.

Professor catedrático reformado

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