Faz de conta

O problema não está apenas nas inconsistências do Código de Conduta do Governo, mas na manifesta tendência de legislar em resposta a escândalos e para inglês ver.

Foi curta a espera: em apenas cinco semanas o Governo redigiu e aprovou o famoso código de conduta que regula a aceitação de ofertas e convites pelos membros do executivo. A iniciativa, anunciada a quente no contexto do “escândalo” Galpgate, é agora apresentada como um objectivo do Programa do Governo para valorizar o exercício de cargos públicos e melhorar a qualidade da democracia. Deixemos de lado o facto de os sucessivos governos nunca terem definido uma estratégia de combate à corrupção, limitando-se a elencar um conjunto de promessas genéricas nos seus manifestos eleitorais – precisamente para que toda e qualquer iniciativa, por mais inconsistente e inócua que seja, possa figurar como um “esforço no bom sentido” – e concentremo-nos no mérito ou demérito do novo código.

Desde 2012, que a Transparência e Integridade, Associação Cívica (TIAC) insiste na necessidade de se adoptar um Estatuto Ético para os membros do Governo e dos gabinetes ministeriais, em cumprimento do disposto no art. 117.2 da Constituição. Infelizmente, o Código de Conduta agora apresentado foi elaborado de uma forma apressada, em circuito fechado, sem auscultar peritos e outras partes interessadas que poderiam ter aconselhado alguma reflexão prévia, calma e rigor. O unilateralismo do Governo nesta matéria torna-se ainda menos compreensível quando em S. Bento foi criada uma Comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas e que se propôs, entre outras coisas, a elaborar um código de conduta para os titulares de cargos políticos.

O Governo reclama que se trata de um instrumento de auto-regulação, mas na prática não passa de um instrumento de auto-perdão: perante a tentação de um conflito de interesses, potencial ou real, (porque o aparente, que também lesa a reputação institucional, nem mereceu reparo), que possa colocar em dúvida “a imparcialidade da sua conduta ou decisão”, o penitenciado deve confessar ao seu “superior” e “tomar imediatamente as medidas necessárias para evitar, sanar ou fazer cessar o conflito em causa”. Em jeito de tragicomédia, tudo está bem quando termina bem!

Num sistema político que não tem sido actuante em matéria de gestão de conflitos de interesses e de venalidade dos seus governantes ou do uso de bens e recursos públicos “fora de parâmetros de razoabilidade e adequação social” (que faz parte do tradicional deboche dos gabinetes ministeriais sobretudo em período pré-eleitoral ou de debandada), apelar ao bom senso dos agentes e deixar ao critério de cada um a resolução dos dilemas éticos é receita para o insucesso.

As ofertas recebidas só são reportadas e registadas nos casos em que a recusa de uma oferta de cortesia de um outro Estado seja susceptível de gerar um embaraço diplomático (e mesmo neste caso, não deixa de ser preocupante a possibilidade de se entregar prendas de elevado valor – por exemplo uma peça de arte – de forma arbitrária a instituições que prossigam fins de carácter social). Ficam de fora de qualquer registo ofertas inferiores a 150 EUR – os famosos cabazes de épocas festivas, distribuídos aos olhos de todos os funcionários, cortesias e apaparicos de proximidade e acesso ao poder. Em relação às ofertas com um valor acima dos 150 EUR, susceptíveis de condicionar a imparcialidade e integridade no exercício de funções, os visados devem apenas abster-se de as receber, mas se as receberem o que é que lhes acontece? Repreensão por parte do seu “superior”? Pedido de demissão? A prática política consolidada ensina-nos que ao primeiro sinal de incumprimento por parte de um ou mais membros do Governo, a reacção dos colegas e do PM vai no sentido de proteger o(s) visado(s). Em suma, a responsabilização política nunca se fez sentir nestes casos e não há motivos para crer que agora as coisas vão mudar com a adopção deste código.

Já em relação aos convites as regras são ainda mais fluídas e permissivas, não havendo sequer qualquer tipo de registo. A questão que se coloca é muito simples: se a presença de um membro de governo, expressamente convidado nessa qualidade, numa determinada cerimónia oficial, seminário ou certame é de interesse público, porque é que deverá ser patrocinada por privados ou por Estados estrangeiros? Para isso já existem despesas de representação e missões protocolares.

Nem tudo é mau. Trata-se de uma primeira tentativa no sentido de criar um Código de Conduta para membros do Governo, e portanto, susceptível de ser revista. A extensão dos mesmos padrões de conduta a outros dirigentes públicos, assim como o reconhecimento da necessidade de proceder à adopção de códigos de conduta sectoriais são questões que devem ser recuperadas em futuras edições.

Limpar os estábulos de Aúgias num só dia é uma tarefa para deuses. O comum dos mortais contenta-se com um passo na direcção correcta. Infelizmente, o problema não está apenas nas inconsistências do Código de Conduta do Governo, e numa aplicação que se prevê inócua, mas na ausência de uma visão de todo e na manifesta tendência de legislar em resposta a escândalos e para inglês ver.

Investigador do ICS-UL e presidente da TIAC - Transparência e Integridade, Associação Cívica

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