Evitar a armadilha

O ambiente em Portugal anda muito polarizado, mas nota-se que os argumentos contra uma governação ancorada à esquerda começam a escassear.

A situação que Portugal está a viver não tem particular mistério numa democracia parlamentar. Só a falta de sentido de responsabilidade dos principais agentes políticos pode tornar complicado e até perigoso aquilo que é simples.

A esquerda tem a maioria absoluta no Parlamento e — coisa inédita — diz-se disposta a usar essa maioria para apoiar um Governo liderado pelo PS (que, segundo este, respeitará as condições apresentadas pelo Presidente da República: estabilidade, durabilidade, maioria parlamentar e continuidade dos compromissos internacionais pelo país).

Face a isto, há três coisas preocupantes.

A primeira, o conteúdo de parte do discurso de Cavaco Silva na semana passada. Não a decisão de indigitar Pedro Passos Coelho primeiro-ministro e convidá-lo a formar Governo — legítima, constitucional e como tal entendida por todos. Mas a forma como se referiu a dois partidos que são parte do nosso arco constitucional — BE e PCP — e deu a entender que nunca empossaria um Governo apoiado por eles. Esta sugestão é tão grave que me limitarei a dizer que, se fosse levada a sério, equivaleria a passar um atestado de incapacidade à nossa democracia. E, em termos práticos, seria pior ainda: Cavaco Silva forçaria o país a viver com um Governo de gestão durante vários meses, o que seria neste contexto catastrófico para o país.

A segunda — o facto de o Governo estar voluntariamente a violar as regras do "semestre europeu". Não tem merecido muita atenção o facto de Passos Coelho se recusar a enviar o cenário-base orçamental à Comissão Europeia, levando Portugal a ser o primeiro país do euro a violar esta regra. Independentemente da nossa opinião sobre esta regra (eu votei contra ela no Parlamento Europeu), não deixa de ser perturbante que um Governo que a apoiou entusiasticamente queira deixar esta pedra no caminho de quem vier a seguir. O Governo conhecia este calendário — todos sabíamos que assim seria quando Cavaco Silva decidiu manter as eleições para esta data — e dá assim motivos de suspeita a quem teme que haja surpresas desagradáveis nas contas do Estado.

Ora, por falar nisso, voltemos a Cavaco Silva e às menções que fez às reações dos mercados internacionais em relação a Portugal. Seria o pior sinal de imaturidade do nosso sistema político que, ao mesmo tempo em que se alerta contra as reações dos mercados, se deixe Portugal vulnerável perante os mesmos mercados. Os responsáveis políticos em funções — Presidente e primeiro-ministro — não podem deixar ao país essa armadilha.

Nestes dias, o ambiente político e social em Portugal anda muito polarizado. Mas nota-se também que os argumentos contra uma governação ancorada à esquerda começam a escassear. Com a eleição de Ferro Rodrigues, a direita entendeu que não tem maioria no Parlamento. Contemplando as dificuldades insuperáveis — práticas e legais, mas sobretudo de legitimidade — de um Governo de gestão por vários meses, espera-se que o Presidente da República entenda finalmente que não pode excluir dois partidos da governação.

Resta à esquerda completar as suas negociações e contribuir para que a democracia portuguesa funcione plenamente.

Historiador, dirigente do Livre

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