“Este Orçamento pode abrir um caminho novo”

Os movimentos sociais esvaziaram, mas as associações de luta de direitos dos trabalhadores precários fizeram o seu caminho de reivindicação. Agora quebram o vidro que os separava do poder.

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ADRIANO MIRANDA

O sociólogo Elísio Estanque, especialista em relações laborais e movimentos sociais, considera que o OE2017 traz novidade no que se refere ao reconhecimento de um novo realidade laboral e do “paradigma dominante actual a nível do mercado de trabalho e da economia”, o do trabalho precário. Um resultado que considera advir dos acordos do PS com o BE e o PCP, que influenciaram o Governo no sentido de dar resposta às novas realidades sociais em Portugal. Especialmente, afirma, do acordo com o BE, partido com o qual os movimentos defesa dos direitos dos precários “tinham canais de ligação”.

Que transformação houve na luta dos precários que não se viram nas ruas mas conseguiram resposta às suas reivindicações no OE2017?
Há transformações de natureza social mais ampla e razões que se prendem com o enquadramento político que foi implementado desde que esta maioria conduziu o PS ao Governo. Do ponto de vista social, tem que ver com uma certa saturação. Os movimentos de grande contestação, que foram realmente muito significativos em Portugal, desagregaram-se, não conseguiram fazer o que aconteceu em Espanha.

Porquê?
Não tinham por detrás uma rede, não houve trabalho dentro dos núcleos duros no sentido de estabelecer e preservar articulações entre diferentes grupos e regiões. Em Portugal, foi tudo muito mais espontâneo. Por outro lado, durante o anterior Governo, houve um ciclo de manifestações muito rotineiras e tornaram-se muito previsíveis por parte do movimento sindical.

Foram absorvidas pelos sindicatos?
De certa maneira. As manifestações têm sempre um objectivo reivindicativo. Mas de um ponto de vista sócio-cultural criam um certo clima e um certo clímax e servem como uma espécie de catarse. Estas dinâmicas não se conjugaram, isso ajudou a um certo cansaço em termos de acção colectiva reivindicativa por parte dos movimentos sociais.

E o peso da emigração?
Parte significativa dos activistas era jovens qualificados que emigraram. Por fim, ainda no tempo de Passos Coelho, depois da saída da troika e com o discurso repetido de que havia uma luz ao fundo do túnel, começou a haver indícios de que estávamos em condições de poder sair da crise, isso também contribuiu para atenuar a crispação na sociedade.

Por que continua a não se ver?
Este Governo alterou o discurso e a prática. Os acordos com o PCP e o BE, obrigaram o PS a fazer concessões e aceitar propostas que são bandeiras mais típicas dessas forças. Sabemos que esses movimentos tinham canais de ligação com o BE. Com o PCP as relações eram diferentes, havia uma certa tensão entre esses movimentos mais inorgânicos e os sindicatos. A presença destas três forças da esquerda abriu canais de diálogo que até aqui não existiam.

É essa a razão também por que há uma certa paz social ao nível da contestação dos sindicatos?
Acredito que o sindicalismo e a CGTP têm que lidar com uma situação que é um pouco ambivalente. Dada a proximidade entre a CGTP e o PCP, que tem um peso hegemónico na central, é evidente que isso não pode deixar de atenuar. A CGTP durante muito tempo funcionou como a correia de transmissão do PCP. Isso não pode deixar de condicionar a abrandar esse ímpeto mais contestatário. Porém, o campo sindical sabe perfeitamente que existe para servir de plataforma de defesa dos interesses dos trabalhadores e também não pode dar a imagem de estar completamente ao serviço de um partido que serve de base de apoio ao Governo. Apesar dos indícios de algum alívio continua a haver problemas.

O OE inicia uma fase de diálogo?
Este Orçamento pode abrir um caminho novo, para surpresa e talvez um certo pânico da direita. Pode haver aqui decisões virtuosas, que conjuguem um certo pragmatismo mais do lado do PS, com um certo radicalismo do lado do BE. O panorama geral do mercado de trabalho tem mudado, vai continuar a mudar. Não é crível que voltemos a ter as mesmas condições que tivemos até ao início da década de 2000. São tendências do paradigma dominante actual a nível do mercado de trabalho e da economia. Porém, é importante que haja forças de contra-tendência, que atenuem o impacto destrutivo que poderia conduzir a uma situação de mercantilização total, a qual resulta numa certa selvajaria no mercado de trabalho que acarreta situações desumanas. É necessário preveni-las, mesmo atendendo às dificuldades das economias.

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