Entrou uma luz pela porta da esquerda

Há, à esquerda, um espaço de aspiração e de sonho que a direita colaboracionista e dos interesses que nos governou nos últimos anos não consegue conceber.

1. Em jeito de nota prévia, e na sequência da minha crónica da semana passada (“O voto inútil”), preciso de dizer que nada me daria maior alegria do que constatar que estava totalmente errado e que estas eleições legislativas iriam afinal permitir a existência de um governo de esquerda em Portugal. De facto, os últimos dias acenderam algumas centelhas de esperança que espero que possam ser sinal de um futuro melhor.

2. Este jornal intitulou o seu editorial de ontem, publicado nestas mesmas páginas, “O doce embalo de um governo à esquerda”, concluindo que esta ideia “pode não passar de uma ilusão passageira e inconsequente”. Pode, de facto. Mas, em política, é conveniente que as frases tenham sujeitos. A política não é como a física. Em política, as soluções constroem-se, conforme as vontades dos indivíduos e as relações de força entre os vários grupos sociais. Em física, as forças “são”; em política, as pessoas “querem” e lutam pelo que querem.

É evidente que a direita (não as forças que regem o Universo), e, em particular, a direita que governou o país nos últimos quatro anos, gostaria que um governo de esquerda nunca fosse realizável. E, por isso, tenta apresentar essa ideia como uma “ilusão passageira e inconsequente”. Mas essa fórmula é apenas a expressão do seu desejo. Nada mais.

3. É curiosa, apesar de tudo, a escolha da expressão “doce embalo” para falar de um governo de esquerda. Repare-se como seria inadequada a mesma expressão para falar de um governo de direita: “O doce embalo de um governo à direita.” Haverá, na actual situação política, algo de exaltante num governo de direita?

Há, na escolha da expressão, o reconhecimento implícito de que há, à esquerda, um espaço de aspiração e de sonho (não só não receio esta palavra como não concebo a política sem ela) que não existe à direita e, em particular, na direita colaboracionista e dos interesses que nos governou nos últimos quatro anos.

É verdade que a possibilidade de um governo de esquerda faz sonhar e alenta os cidadãos que, numa clara maioria, votaram à esquerda nas últimas eleições. E essa capacidade de mobilização é uma das virtudes da solução de um governo de esquerda, pois é evidente que o caminho dos próximos anos será recheado de sacrifícios e carece de apoio popular. A questão é se queremos fazer sacrifícios em nome de uma sociedade mais justa ou se vamos fazê-los para transferir os impostos dos trabalhadores e o nosso património colectivo para as mãos dos mais ricos.

4. Todos os comentadores, à esquerda e à direita (ainda que os últimos de forma mais dramática), fazem notar a dificuldade de um acordo PS-PCP-BE devido a diferenças de opinião significativas entre os três partidos no que diz respeito à necessidade de reestruturação da dívida, à aceitação do tratado orçamental e à aceitação do euro. É conveniente ter em conta que metade do que se diz é pura e simplesmente mentira (“O PCP e o BE exigem a saída do euro”, “Só a esquerda radical defende a reestruturação da dívida”) e que outra metade é apresentada de forma abusivamente simplificadora (“O PCP é contra a Europa”). Mas é verdade que a esquerda tem, sobre estas questões, opiniões diferentes. Só que, mesmo sobre estas questões, a esquerda também partilha pontos de vista. Toda a esquerda (e muita direita, já agora) concorda que a adopção do euro provocou graves desequilíbrios entre países e regiões da União Europeia, com empobrecimento dos mais pobres e enriquecimento dos mais ricos, e que é necessário encontrar uma solução para o problema, sob risco de criação de tensões políticas insanáveis. Toda a esquerda (e muita direita) contesta os limites estabelecidos no tratado orçamental, que não possuem qualquer base científica, e as regras que parecem visar apenas um objectivo de controlo político dos países devedores. Toda a esquerda (e muita direita, incluindo Christine Lagarde e Mario Draghi) reconhece a necessidade de reestruturar a dívida pública. É um facto que o PS tem preferido adoptar, em relação a estas e outras questões, uma pose excessivamente conservadora, mas isso deve-se mais a uma leitura da relação de forças do que a uma discordância de fundo quanto aos sólidos argumentos que têm sido apresentados à sua esquerda e por peritos insuspeitos de esquerdismo como Paul Krugman. Não existe, relativamente a muitas destas divergências, qualquer repulsa de base, e a prova é que os partidos de esquerda parecem dispostos a pôr estas questões entre parêntesis.

P.S.: Na minha última crónica, onde fazia o balanço dos ganhos e das perdas dos vários partidos, referia, a propósito da CDU, que tinha aumentado a sua percentagem de votantes (de 7,94% para 8,27%) e conquistado 3400 novos votantes, mas não dizia que tinha também conquistado mais um deputado do que em 2011 (17 em vez de 16). Fica aqui a nota.

jvmalheiros@gmail.com

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