Ensaio sobre a lucidez

O grande vencedor destas eleições autárquicas foi a abstenção. Não houve festa. Não se abriram garrafas de champanhe. Na sede de campanha da dita abstenção não havia ninguém para festejar. Abstiveram-se.

Num dia de chuva, poucos eleitores apareceram de manhã para votar. As autoridades temiam uma enorme abstenção. À tarde, a afluência às urnas começou a melhorar e até se faziam filas para votar. Mas ao final do dia, fechadas as urnas, e para grande espanto e consternação das autoridades eleitorais, concluiu-se que 70% dos eleitores votaram em branco. Uma catástrofe!, berravam os partidos da direita, da esquerda e do meio.

Esta história passa-se num país imaginário e é contada por José Saramago no livro Ensaio sobre a Lucidez.

Portugal nunca terá tido uma abstenção de tal monta. Mas já estivemos lá perto. Nas europeias de 94, a abstenção atingiu os 64,5% e, nas presidenciais em 2011, chegou aos 53,5%. 

Nas autárquicas, a abstenção, por norma, não costuma ser muito elevada, ou melhor, não costumava. Mal chegava aos 40%. Mas nas eleições desta semana bateram-se todos os recordes: 47,4% dos eleitores inscritos não votaram. E os votos nulos e brancos atingiram também valores recorde, passando para o dobro face a 2009.

E qual é a explicação para este fenómeno? No romance de Saramago, um dos personagens, o ministro da Justiça, ensaia uma explicação que escandaliza os seus colegas de governo: “O voto em branco poderia ser apreciado como uma manifestação de lucidez por parte de quem o usou.”

Os politólogos que comentaram o nível de abstenção nestas autárquicas, os votos nulos e os votos em branco não se atêm apenas aos exercícios de lucidez. Falam do voto (ou não voto) de protesto, da fadiga da austeridade, da cobertura (ou falta dela) das televisões, da abstenção técnica e dos eleitores-fantasma. E há quem prefira colocar o eleitor num divã e perorar sobre a psicologia eleitoral. O voto em branco ou nulo pode expressar um protesto. A abstenção pode significar alheamento. Sendo que o sentimento de impotência — “o meu voto pouco ou nada vai mudar” — pode ser o denominador comum a quem rasura o seu boletim de voto, a quem nada escreve ou a quem nem sequer se dá ao trabalho de lá pôr os pés.

Campos e Cunha dizia há uns tempos numa entrevista que os votos em branco — e não as abstenções — deviam estar representados no Parlamento por lugares vazios. Uma excelente ideia. E a abstenção?

A abstenção não é uma manifestação de lucidez. A abstenção é o alheamento, a indiferença, o desinteresse, a desistência e a resignação. Empobrece e enfraquece a democracia. E a culpa não é só dos políticos, pelo que fazem e pelo que deixam de fazer. É também de quem se abstém de escolhê-los e de castigá-los nas urnas.
 
 

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