É difícil sacudir a água do capote

Se Costa obtiver a maioria absoluta que reclama, é mais do que um milagre - é porque Cristo voltou à terra.

Escrevo a 27 de Novembro. Já pouco se pode acrescentar aos comentários sobre mais este “caso Sócrates”, sobretudo depois do corajoso artigo de João Miguel Tavares sobre a “presunção de inocência” publicado no PÚBLICO, que subscrevo por inteiro. Falta, todavia, mencionar alguns “detalhes” no que respeita ao Partido Socialista e ao seu novo líder, António Costa. E chamar à atenção para que o ex-primeiro ministro já começou a perturbar.

Não por coincidência, na noite mesma do dia em que Mário Soares o visitou em Évora, o “detido especial” declarou ao PÚBLICO através do advogado: “As imputações que me são dirigidas são absurdas e injustas.” O que mais disse (PÚBLICO, 27.11.14) é a repetição daquilo a que já estamos habituados: Sócrates, a costumada vítima inocente de calúnias e cabalas urdidas por inimigos covardemente escondidos. Nessa noite, já se sentia encorajado, e legitimado, pela “comovente” visita do “grande amigo” Mário Soares, que à saída da cadeia não se coibiu de insultar a Justiça, quando denunciou que por trás desta prisão escandalosa estavam ocultos “malandros” responsáveis pela “bandalheira”, e que, à excepção dos jornalistas presentes, claro…, todos os outros estavam infectados pela maléfica influência albergada no Ministério Público.

Com este “arranque”, patrocinado pelo venerando Pai da Democracia e fundador do PS, e que José Sócrates de imediato aproveitou, adivinha-se um estímulo ao desejado movimento de revolta contra a infâmia que um processo obscenamente mediatizado fez recair sobre quem foi “um primeiro-ministro exemplar” (Soares dixit) e que agora, no recato da sua cela, “fora do mundo”, mantém “uma postura muito filosófica” (na ridícula expressão da sua ex-mulher), certamente inspirada pelos seus estudos em Paris. Sócrates, reivindicando que “Este processo é comigo e só comigo”, agradecendo embora “a solidariedade de amigos e camaradas”, já agigantou as tremendas dificuldades que o seu “caso” cria a António Costa, obrigado a apresentar-se em escasso tempo a eleições liberto do estigma “socrático” que em muita, demasiada gente gera repulsa ou rejeição por um PS comprometido com uma governação manchada ao longo de seis anos por sucessivos “casos” (sete) que exigiram de todos nós uma “presunção de inocência” contrariada pela nossa legítima “presunção de culpa”, que a desfaçada eloquência do ex-primeiro-ministro e o sistemático arquivamento dos processos paradoxalmente confirmavam.

Diria que, neste momento, António Costa é a principal vítima do mais recente “caso” de Sócrates. Costa, que tenho na conta de impoluto, inteligente e pouco dado a “estados de alma”, cometeu a (quase) inexplicável imprudência de logo no início da sua campanha para remover Seguro e ser ele a devolver o governo ao PS, erguer a bandeira da reabilitação do secretário-geral que em trinta anos dera a primeira maioria absoluta ao partido. A decisão de enfrentar Seguro foi legítima e pareceu acertada, face à inépcia por este demonstrada. Mas a verdade é que Costa precisava da facção socrática para alcançar os seus fins de transformar o PS num candidato plausível a governar Portugal. Ofereceu um exemplo que acabou a dar-lhe lenha para se queimar. O entusiasmo dos socratistas indefectíveis começou-se logo a notar. Até que Ferro Rodrigues, o novo líder parlamentar, aquando da discussão do orçamento, cometeu a suprema e desnecessária asneira de subir ao púlpito da Assembleia da República e exaltar “José Sócrates!” num tom mais apropriado para aclamar heróis. A bancada socialista, ou a maior parte dela, aplaudiu ruidosamente a celebração de tão augusto nome. A partir daí, o “costismo” passou à categoria de um “neo-socratismo”; o destino do PS voltou a depender da sua ligação ao agora novamente “infamado” filósofo.

As perguntas impõem-se: nunca reparou Costa que jamais algum “caso” se passou consigo, ao passo que Sócrates criava um a cada passo? Nunca notou Costa o contraste entre a sobriedade da sua vida privada e o ofensivo novo-riquismo de Sócrates? Nunca meditou em que a vida luxuosa que este levava em Paris era incompatível com um orçamento de 120.000 euros para um ano e mais o tempo que por lá ficou? Nunca achou excessivo o dispêndio em PPP’s ruinosas, estádios de futebol megalómanos, auto-estradas desnecessárias ou milhares de “Magalhães” que depressa se revelaram inúteis? Esqueceu mesmo que Sócrates deixara o país arruinado, à beira de uma bancarrota que só por intervenção da Troika, por ele mesmo pedida, se não chegou a consumar? E todo o restante “inner circle” do herói também andou a dormir na forma durante anos?

Perguntas deste tipo poderiam multiplicar-se. Mas resta salientar a mais assinalável distracção. Entretanto, Noronha da Costa abandonou o STJ, tal como o dúctil Pinto Monteiro abandonou a Procuradoria-Geral. A nova Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, e o novo Procurador-Geral-Adjunto, Adriano Cunha, têm, como há muito se percebeu, noções da sua missão muito diferentes das dos seus antecessores. Muita coisa mudou na Justiça para melhor. Acresce que o amigo Vara também já não está na CGD para impedir comunicações inconvenientes. Costa e os militantes mais responsáveis do PS parecem não ter dado por que Sócrates estava mais vulnerável. Agora, têm que se desligar novamente do seu destino, o que quer que aconteça daqui para a frente: virou-se irremissivelmente uma página na história da Democracia portuguesa. Se Costa obtiver a maioria absoluta que reclama, é mais do que um milagre – é porque Cristo voltou à terra.

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