É a soberania, idiota!

Escrevo este artigo a partir de Bruxelas, que é um bom local para relembrar que os problemas actuais do euro (e todas as críticas e apoios aos governos grego ou alemão podem também ser explicadas pela frase "é a soberania, idiota!").

A frase original, "é a economia, idiota!", é de 1992 e foi criada por James Carville para a campanha de Clinton com o objectivo de enfatizar a importância da economia e a necessidade de escolher entre mais do mesmo ou algo de verdadeiramente diferente.

Não é simpático chamar idiota a ninguém, mesmo que as suas atitudes possam parecer centradas no curto prazo, no egoísmo, numa retórica assente em preconceitos e alicerçada em velhos dogmas de direita ou de esquerda.

No entanto, se nas caras que desfilaram pela mente do leitor, ao longo da leitura da frase anterior, tiverem surgido políticos e comentadores políticos, é porque as dinâmicas políticas actuais lhe parecem também estranhas e incompreensíveis — faça o leitor as suas escolhas à esquerda ou à direita, vote regularmente ou tenha já desistido de votar em eleições.

Enquanto o espaço público online e as televisões são ocupadas por quem procura reforçar as ideias daqueles que já concordaram consigo, antes de começar a falar ou a ser lido, os problemas continuam a acumular-se na Europa e nos países da União.

A discussão sobre a Grécia e a tentativa de colocar todos os intervenientes com opinião como apoiando o governo grego ou o governo alemão, ou quaisquer outros governos, é "idiota" porque é equivalente a gritar da bancada num jogo e acreditar que os jogadores assim correm mais e que, ainda por cima, que isso chega para ganhar algo.

É "idiota" porque esconde o real problema, que não é dos mercados, nem do euro, nem do ministro das Finanças alemão ou do ministro das Finanças grego.

O que se passa na Europa é que as pessoas, os cidadãos, estão descontentes. E tanto estão descontentes nas eleições em Hamburgo quando votam no "Alternativa para a Alemanha" (AfD) e no seu programa anti-euro como quando votam no Syriza em Salónica.

Seja pelas boas ou más razões, o problema é que os cidadãos de todos os países da União estão cada vez mais descontentes com a expectativa futura de terem de alienar a sua soberania e, também, de já terem alienado demais.

Isso não é antagónico com estarem contentes com o euro, pois gostam do "seu euro", gostam dos seus euros portugueses, gregos, espanhóis, franceses ou alemães, mas não gostam do que o "euro dos outros" representa para a sua soberania.

Os partidos que estão a surgir à direita ou à esquerda e a capitalizar votos na Europa são todos, neste momento, ou nacionalistas ou soberanistas ou patrióticos. A Frente Nacional, em França, define-se como nacionalista, já o Podemos, em Espanha, define-se como patriótico, a AfD é soberanista e o Syriza também.

No entanto, os partidos em crescendo na Europa (e não aqueles que estão à defesa tentando não perder votos nas próximas eleições) também não são antieuropeus, apenas procuram outra Europa que lhes permita recuperar soberania.

É um paradoxo mas é compreensível, algo não está a funcionar na Europa e, por arrasto, também ao nível nacional e, por isso, algo de diferente se está a formar.

Mesmo em Portugal, onde as intenções de voto não mostram ainda (pelo menos nas próximas legislativas) um novo partido com um líder carismático que desafie a tradicional distribuição de votos, há múltiplos sinais de mudança.

Muito mudou desde a "tanga" e o "pântano" do início do novo século português, não é preciso procurar muito para perceber que algo mudou, está a mudar, mas ainda não ganhou forma definitiva em Portugal.

Para além do que podemos ler diariamente sobre o crescer das desigualdades em Portugal e da baixa dos juros da dívida portuguesa, há um vasto conjunto de mudanças que se estão a acumular e que, mais ou menos, lentamente virão à superfície sob uma forma diferente daquela que captamos na nossa análise das rotinas diárias.

Em conjunto com três colegas sociólogos, publicámos em 2015 um livro sobre as mudanças na sociedade portuguesa nos últimos dez anos, chamado A Sociedade em Rede em Portugal. Uma década em transição.

Nesse livro há múltiplos sinais que valerá a pena listar, mas bastarão apenas alguns para ilustrar o argumento de que os cidadãos percepcionam que há algo que já não funciona em Portugal e que, para o consertar, algo necessita de ser mudado no quadro do exercício da nossa soberania e cidadania.

Perto de 70% dos portugueses pensam que as pessoas podem influenciar os acontecimentos com mobilizações políticas e sociais. A concordância com esta ideia teve um aumento de 16% entre 2003 e 2013.

Apenas 8% considera que o sistema económico português tem sido justo para si.

Cerca de 60% dos portugueses considera que o sistema económico actual afecta negativamente a sua vida pessoal.

Segundo a percepção de 83% dos portugueses, a distribuição de rendimentos em Portugal e´ mais desigual do que na maioria dos países da Europa.

No que respeita a indicadores de atitudes face a` mudança, 85% dos portugueses consideram que precisamos de novas políticas com ideias novas.

No conjunto da população portuguesa, 45% dos indivíduos acham que podem contribuir para uma mudança social positiva.

Um terço dos portugueses (33%) considera como principal responsável pela crise económica actual os governos portugueses, 19% os líderes políticos portugueses em geral, 8% os bancos portugueses, e 25% culpam todo um conjunto de instituições, pessoas e contextos por igual.

Mais de 70% dos portugueses mostraram a sua inquietação com escândalos como o caso BPN ou o caso dos submarinos.

Cerca de 85% dos portugueses pensa que, de uma forma geral, devia haver mais fiscalização por parte do governo em relação às instituições financeiras, como bancos e empresas de crédito.

O aumento da taxa de desemprego para uma das mais elevadas da Europa, a redução do poder de compra da população e a falta de recuperação económica preocupam cerca de 90% dos portugueses.

Sobre a escolha entre austeridade ou estímulo económico como forma de superar a crise, 50% dos portugueses acha que devia haver um equilíbrio entre medidas de austeridade e medidas de estímulo ao crescimento e 31% pensa que devia ser dada preponderância a estas últimas.

Para além de um ambiente que oscila entre a vontade de romper com o que está e o não vislumbrar ainda como tal poderá acontecer, o que os dados nos mostram é a percepção de que, se não houver um reequilíbrio da soberania no quadro Europeu, os problemas que hoje identificamos continuarão por tempo indeterminado.

Isto diz-nos que, se a Europa não mudar (Europa aqui definida como o conjunto de cidadãos eleitos em diferentes países e tecnocratas, também eles cidadãos de países europeus, que se encontram regularmente em reuniões da União Europeia), a actual crise não poderá ser resolvida, estará apenas a metamorfosear-se, de novo, noutra coisa.

Na metamorfose actual, depois de já ter sido financeira, económica, fiscal e política, está agora a evoluir para uma crise de soberania europeia e a deixar de ser, apenas, uma crise da dívida soberana europeia.

Professor do ISCTE-IUL, em Lisboa, e investigador do College d'Études Mondiales na FMSH, em Paris

 

 

 

 

    

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