Duas personalidades e dois programas em confronto

É muito importante associar ao confronto das personalidades o cotejo dos programas em disputa.

1. O combate directo entre António Costa e Pedro Passos Coelho impor-se-á progressivamente como o tema central do debate pré-eleitoral, sem que daí resulte necessariamente uma desqualificação do confronto de ideias e de programas.

No auge do cavaquismo o Professor Adriano Moreira detectou uma evolução funcional do nosso sistema político no sentido da consagração da primazia do Chefe do Governo, o que o levou a enunciar a célebre tese da “presidencialização” da figura do Primeiro-Ministro. Na época essa caracterização parecia meramente circunstancial e, como tal, destinada a perder largamente a sua validade uma vez terminada aquela concreta fase histórica. Fase essa muito marcada pela supremacia do Professor Cavaco Silva no interior do seu partido que dispunha de uma clara maioria absoluta no Parlamento. O Grupo Parlamentar do PSD actuava com elevadíssimo sentido de obediência e de disciplina contribuindo, assim, para uma relativa anulação do papel da Assembleia da República e para um reforço da importância do Governo e de quem o dirigia. Apesar da permanente inquietação do então Presidente da República, Dr. Mário Soares, era por demais evidente a centralidade da figura do Primeiro-Ministro no contexto geral de todo o sistema político. Daí a oportunidade da subtil apreciação formulada por Adriano Moreira. Esta, com o passar do tempo, revelou-se, aliás, ainda bem mais pertinente e permanente do que então se julgava.

Para que tal sucedesse contribuíram vários factores, entre os quais avulta aquele que consistiu numa drástica alteração das condições de percepção pública do próprio fenómeno político. Aquilo que poderemos designar por uma mediatização invasiva de toda a discussão política teve por efeito uma projecção de modelos e de categorias provenientes de outras esferas (comunicação, marketing, linguagem audiovisual assente numa narrativa telenovelesca) no âmbito estritamente político com consequências práticas evidentes. Uma delas foi a da criação da figura do “candidato a Primeiro-Ministro” com a inerente modificação dos mecanismos de legitimação democrática. Essa alteração só por si conduz à personalização das eleições legislativas em torno dos nomes daqueles a quem são aprioristicamente reconhecidas reais possibilidades de ascensão a tal cargo. Tem, aliás, outro efeito: o de fragilizar mortalmente um Primeiro-Ministro que não tenha passado pelo crivo eleitoral directo. Que o diga o Dr. Pedro Santana Lopes, que foi claramente vítima dessa situação. Todos os erros e falhas do seu Governo foram exorbitantemente amplificados devido a essa insuficiência de ordem genésica. De outro modo, muito dificilmente o Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, teria tido condições favoráveis à dissolução da Assembleia da República.

A circunstância da direita concorrer coligada nas próximas eleições legislativas aumenta a tendência para uma focalização ainda maior do debate pré-eleitoral no confronto entre aqueles que são percebidos como os dois protagonistas principais. Não emito nenhum juízo de valor acerca deste facto – limito-me a assinalá-lo e a retirar do mesmo as devidas ilações. No dia 4 de Outubro à noite a maioria dos portugueses estará ansiosamente à espera de uma informação: saber quem vai ser o próximo Primeiro-Ministro. Tudo o resto é objectivamente secundário. Se for Pedro Passos Coelho ficará consagrada a vitória de um modelo de governação conservador e liberal, bem patente no programa da coligação; se for António Costa abrir-se-á um novo ciclo político marcado pela prevalência de uma visão tipicamente social-democrata. Mesmo sem maiorias absolutas, de um lado ou de outro, a figura do Primeiro-Ministro determinará a natureza da nova legislatura. Será em torno dele, da sua capacidade de gestão do tempo e do modo da acção política, que tudo fatalmente girará.

No início das legislaturas todos os Chefes do Governo são fortes, mesmo quando não dispõem de suporte parlamentar maioritário, desde que possam usar com verosimilhança a ameaça da crise política. Claro que um Primeiro-Ministro que tenha exercido anteriormente com maioria absoluta não estará tão forte como alguém acabado de chegar ao desempenho dessa função. António Costa, numa circunstância desta natureza, teria ainda uma outra vantagem – a de poder confrontar simultaneamente os partidos situados à sua esquerda e à sua direita com as suas responsabilidades ou, pelo contrário, com as suas irresponsabilidades. Só isso aumenta muitíssimo a sua margem de manobra sem necessidade de qualquer tipo de cedência nos fundamentos programáticos que o animam.

Por tudo isto é inevitável que a questão maior da noite eleitoral seja aquela que referi acima e que isso condicione todo o debate em curso. Nessa perspectiva é muito importante associar ao confronto das personalidades o cotejo dos programas em disputa. Tal tarefa é até relativamente fácil tendo em conta a nitidez da diferenciação dos mesmos em torno de duas questões essenciais: as políticas económicas de curto e médio prazo e o papel do Estado na promoção da igualdade e no combate às injustiças sociais.

2. Causou algum espanto o facto de Maria de Belém ter anunciado a sua candidatura presidencial no mesmo dia em que foi formalizada no Tribunal a entrega da lista de candidatos a deputados do PS pelo círculo de Lisboa, que ela própria integra na condição de suplente. Creio que fez bem em fazê-lo por razões de honestidade política. Ao aceitar participar na lista do PS revelou fidelidade à família política a que pertence; ao declarar a intenção de uma candidatura presidencial futura manifestou lealdade para com os seus potenciais eleitores oriundos de outros espaços políticos. Não escondeu nada, não fingiu coisa nenhuma, não renegou aquilo que sempre foi. Até agora ainda não vi ninguém a agir com tanta clareza.

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