No jogo de espelhos da decoração oitocentista da sede do PS, no Palácio Praia, no Largo do Rato, as primeiras imagens de movimento surgem reflectidas já depois das 3h da manhã. O barulho das cadeiras arrastadas confirma: terminou a reunião que juntou mais de 80 dirigentes socialistas, ali presentes desde as 21h30. O regulamento para o acto eleitoral das primárias, que vai decidir quem é o candidato do PS ao cargo de primeiro-ministro, acabara de ser votado ponto por ponto. No final, a proposta de António José Seguro recolheu 48 votos a favor, 23 contra e uma, isolada, abstenção.

Entre a sala onde se reuniram e a porta (com dois batentes de metal em forma de mãos, fechadas) há uma escadaria com uma passadeira vermelha. E todos por ali passam, os vencedores e os derrotados. Esta noite, Costa era o principal derrotado. As suas propostas de alteração do regulamento foram, quase todas, recusadas. Com uma excepção, significativa. Jorge Coelho vai mesmo ser o presidente da comissão eleitoral que organizará as primárias, tal como o autarca de Lisboa sugerira. Seguro aceitou, garantindo que o regresso, há muito ensaiado, de Coelho à vida partidária se faz com um cargo, formal. E uma responsabilidade histórica. Há muito que o partido não se encontrava tão dividido.

Basta ver uma das votações, de um ponto que ocupou uma parte significativa do debate: a data de fecho dos cadernos eleitorais, isto é, o prazo a partir do qual se encerram as listas dos eleitores (militantes e simpatizantes) que vão eleger o tal "candidato a primeiro-ministro". Seguro queria que essa data fosse o mais próxima possível do escrutínio, propondo o dia 21 de Setembro, uma semana antes da votação. Costa argumentou que isso seria muito tarde, caso houvesse reclamações ou erros nas listas. Propunha que os cadernos fechassem no final de Julho. Já a madrugada ia alta quando Duarte Cordeiro, vereador em Lisboa e ex-líder da JS, apresentou uma nova proposta: 5 de Setembro. Seguro refez a sua: 12 de Setembro. A proposta de Cordeiro recolheu 26 votos. A de Seguro ganhou com mais do dobro: 57. E ainda houve três dirigentes que quebraram a regra de não haver abstenções nas votações em alternativa.

O outro ponto que Costa insistia em mudar era o da fiscalização das primárias. Seguro queria delegar essa competência no conselho de jurisdição que foi eleito no último congresso. Costa pretendia que a comissão política aprovasse um órgão específico para as primárias, uma vez que são eleições não previstas nos estatutos. Queria, aliás, que esse novo conselho de fiscalização fosse aprovado "por consenso", com dois terços dos votos. Propôs que fosse presidido por António Vitorino. Seguro não aceitou. E a proposta foi chumbada, como quase todas as outras.

Seguro: “Costa é responsável”
A discussão era dura. Costa acusou Seguro de dispor de "mercenários" para o criticar na comunicação social. Seguro acusou Costa de provocar uma "crise no PS". Voltaram as intervenções dramáticas, as recriminações, o tom confessional.

Nada fora do normal, garante Francisco Assis: "Os debates políticos encerram sempre alguma tensão." Assis apoia Seguro, mas considera que "teria sido preferível" que tivessem chegado "a um consenso, para afastar suspeitas". Outro apoiante de Seguro, o líder parlamentar Alberto Martins, tem uma leitura diferente. "A democracia é assim mesmo. As decisões tomadas democraticamente vinculam o partido", diz e responde, desta forma, a Costa.

António José Seguro, que foi o último a sair, também respondeu. "O dr. António Costa é responsável pelas suas atitudes. Não sei do que é que ele tem medo..." Declarando-se "disponível" para debates nas TV, Seguro afirmou que ainda não encontrou qualquer diferença programática no discurso do seu opositor.

Costa: “A mesma tranquilidade”
António Costa, que saíra minutos antes, lamentou que tivessem sido chumbadas as suas propostas que "ajudavam a credibilizar" o processo das primárias. Diz que não concorda com o regulamento aprovado e, por isso, votou contra. Garante, porém, que manterá a sua candidatura "com a mesma tranquilidade". Isto, apesar de haver um tom algo sombrio na discussão entre os socialistas. Mais uma vez, Costa preferiu o humor: "Só não vemos o sol porque é noite..."

Cerrada, esta madrugada lisboeta. O painel na paragem do autocarro informa que faltam 43 minutos para a chegada do número 202 para o Bairro Padre Cruz. As portas largas da sede do PS fecham-se. E lá estão as duas mãos, fechadas, uma frente à outra, como o gesto de um boxeur que protege a cara, e assim ganham toda uma nova simbologia. Até ao próximo dia 28 de Setembro, quando se souber qual dos dois é o preferido dos eleitores socialistas.