Quinze depoimentos sobre Mário Soares

Uma selecção de depoimentos sobre o ex-Presidente da República, que hoje comemora 90 anos.

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Daniel Rocha

O PÚBLICO falou com 28 personalidades distintas e, aqui, publica 15 desses depoimentos. Assim se esboçam, com afecto, críticas, zangas, reconhecimento e humor, os contornos de quem, no século passado, foi definido como um "animal político".

Um combatente por vício
Júlio Pomar
Pintor

Passámos, com outros, quatro meses juntos na prisão, de manhã à noite, no forte de Caxias. Naquela altura não havia risco de se estar sozinho numa prisão porque havia muitos presos, estava tudo cheio. Era o tempo do MUD [Movimento de Unidade Democrática] juvenil ao qual nós pertencíamos, tinha havido greves, uma sublevação militar… enfim, estava tudo cheio nas prisões. Assim, havia que passar os dias e inventavam-se muitas coisas. Desde a simples anedota que se contava até coisas mais sérias. Lembro-me que dei mesmo um curso de iniciação às artes. Entre os jogos ou brincadeiras houve uma que era deitarmo-nos a adivinhar o que o outro seria no futuro, pois as nossas idades, na maior parte dos casos, pouco passavam dos 20 anos. Eu era dos mais novos, sentia-me mal ser um menino ao lado dos mais crescidos. Então, deitámo-nos a adivinhar o nosso futuro, embora o nosso sonho fosse mudar o país. E já não me lembro quem disse que “tu Mário vais ser Presidente da República”. Era evidente. Apoiei a sugestão, porque era uma evidência. E ele, com a simpatia que sempre teve por mim, disse-me: “e tu vais ser um grande pintor, pá!”. É uma história que o Mário lembra muitas vezes. Quando se está de manhã à noite na mesma companhia há uma quantidade de coisas que acontecem, que evidenciam o comportamento das pessoas. O Mário é uma pessoa muito sociável e é um combatente. Um combatente por vício. Talvez seja também um vício nosso carregar esta palavra com uma tonalidade negativa. Para mim é uma qualidade.

 
Coragem e generosidade
Frei Bento Domingues
Sacerdote

A primeira vez que vi o dr. Mário Soares, não me recordo o ano mas já nessa altura havia muita agitação política, e ele estava de passagem por Lisboa. Não sei, com exactidão, de onde vinha e para onde ia. Houve alguém que fez uma convocatória, talvez para o sótão de Keil do Amaral. Era um espaço muito grande, mas havia gente cá fora, porque não se conseguia entrar, o que motivou alguns protestos. Só me recordo da bonomia de Soares que disse que nós só vivíamos para falar e dialogar, não para insultar. É uma recordação vaga. Depois, segui-lhe o percurso, tanto no exílio como em Paris e na formação do Partido Socialista. Lembro-me que com os amigos de cá [de Portugal] de Mário Soares, Sottomayor Cardia que tinha saído do Partido Comunista e que era um grande amigo meu, Salgado Zenha, Ribeiro dos Santos, nos reuníamos. Era no espaço de uma cooperativa que pertencia à CEUD [Comissão Eleitoral de Unidade Democrática] perto da Avenida da República. Estava em preparação o trabalho de redacção dos princípios do PS. Eu fui convidado para esse trabalho, nunca fui do partido, fui convidado para ir ao congresso da fundação mas não fui. Por opção íntima nunca pertenci a um partido, embora tenha ajudado o trabalho de vários. Mas o drº Mário Soares sabia do meu empenhamento na causa de que ele era o grande líder, antes e depois do 25 de Abril, que era a liberdade. Encontrei-o de novo, e então pude fixá-lo bem melhor, quando ele foi advogado do Saldanha Sanches, do MRPP, um grande amigo meu. Soares disse no tribunal que a repressão do regime [a ditadura] é que era a causa das posições extremistas. Para definir Mário Soares tenho de recorrer a duas palavras. Por uma simples razão. Aquilo que sempre encontrei nas reuniões a sós ou em almoços e jantares com Mário Soares, e que sempre ressoa no meu espírito, é a coragem e a generosidade. As duas a ajudarem-se uma à outra.

Telefonou para o IX Congresso do PCP
Carlos Brito

Ex-dirigente do PCP

As relações entre o PS e o PCP depois do 25 de Abril nunca foram muito cordiais. No PCP responsabilizava-se  Mário Soares. Mas nem sempre foi assim. Em 1979, durante o governo de iniciativa presidencial presidido por Mota Pinto, decorria o IX Congresso do PCP, no Barreiro. Um Congresso marcado por grande entusiasmo e ardor partidário. Mário Soares com a ousadia e o desembaraço que o caracterizam telefona-me para o Congresso. O Álvaro Cunhal tinha feito um discurso demolidor do governo Mota Pinto e responsabilizado o PS pela sua manutenção, pois não queria colaborar com o PCP na utilização dos instrumentos constitucionais que poderiam levar à queda do executivo. Digo ao Cunhal que havia um telefonema do PS, vou atender e pergunto quem fala. “Mário Soares”, responde do outro lado. Argumento que estamos em Congresso. Diz-me que é por isso mesmo que telefona: “Venho anunciar que o Partido Socialista vai apresentar uma moção de censura ao governo no princípio da próxima semana”. Exclamo, finalmente! Então, propõe que o PCP vote a favor da moção do PS e que o Partido Socialista votará a  favor da nossa moção. Reunimos de emergência os membros da comissão política do PCP. Havia divergências. Uns diziam que Soares queria tirar brilho ao Congresso com a questão da moção de censura. Cunhal pensou ao contrário. Disse que se o Congresso ficasse associado à moção de censura e esta tivesse eficácia constitucional, só dava brilho ao Congresso. Concordámos. Perguntei a Mário Soares qual era a primeira moção de censura que era apresentada. “As duas ao mesmo tempo”, respondeu. E assim se fez: os dois líderes parlamentares, o socialista Carlos Lage e eu, apresentámos as moções de censura. Depois, Mota Pinto pediu a demissão. Tivemos sempre boas relações para além das institucionais, havia uma simpatia reciproca que muitas vezes facilitou a colaboração. Algumas vezes eu e o Pato [Octávio Pato, dirigente do PCP] fomos convidados para jantar em casa de Mário Soares. Sempre foi um homem de acuidade e desembaraço.

Acima do bem e do mal 
Fernando Henrique Cardoso

Ex-Presidente do Brasil

Muito poucos presidentes na história escreveram um livro em comum sobre o país do outro, o que é significativo. Estava na presidência em épocas agitadas, o livro [O Mundo em Português, um diálogo] começou no Palácio da Alvorada. Mário ficou lá vários dias. Gravámos muitas conversas que, depois, foram resumidas. Ele já estava retirado da presidência, eu ainda estava em exercício, claro que me custava mais, mas foi um grande prazer. Tenho várias histórias com o Mário. Em 1973, no dia 10 de Junho para comemorar o dia de Portugal, fui convidado para falar para um grupo de portugueses anti-salazaristas que moravam aqui. Estávamos em ditadura, e  e eu disse sabe Deus quantas décadas mais. O Mário veio depois ao Brasil, vinha fazer uma palestra e disse-me para chamar os meus amigos para anunciar que as coisas iam mudar em Portugal. Tive dificuldade em encher a sala, e apesar da convicção do Mário, ninguém acreditou. Poucos meses depois, veio o 25 de Abril. Isso mostra o espírito do Mário. Que não desiste, que luta. É um grande amigo do Brasil, aliás um grande amigo da cultura portuguesa onde quer que ela esteja. É muito activo. Uma vez fui a Portugal, o Mário era primeiro-ministro e estava em campanha, eu fui com ele, fiz um comício para ver como era. Outra vez, já era Presidente, recebi o título de Doutor [honoris causa] em Coimbra, quando o Mário tinha a presidência itinerante [presidência aberta]. Foi uma noite admirável, com os professores a cantarem fados ao ar livre. O Mário parecia uma espécie de Rei de Portugal, uma pessoa que estava acima do bem e do mal, como se fosse natural ser ele a representar Portugal. De facto, para quem não mora em Portugal, Mário continua a ser a grande figura que sintetiza o país. Poucas pessoas tiveram a trajectória do Mário Soares. Lutou contra a ditadura, foi Presidente, foi primeiro-ministro, tomou posições que foram muito discutidas na época sobre a política económica, sempre foi europeísta e socialista e continua a ser respeitado. É um homem de coragem com generosidade.
 
Uma gratidão muito pessoal
Leonor Beleza

Presidente da Fundação Champalimaud

Tenho com o dr. Mário Soares uma história que julgo que deverão ter todos os portugueses que gostam da liberdade e da democracia, porque houve uma altura em que ele se colocou frente às ameaças que pendiam sobre a liberdade e nos defendeu a todos. Eram ameaças novas, à liberdade, que se tinham conquistado há pouco. Mas tenho uma história particular com o drº Mário Soares em que experimentei o que é a força, a coragem, a determinação e, se me é permitido dizer, a lucidez perante ameaças, quando eu próprio, pessoalmente, fui ameaçada e ele, de certa maneira, se pôs à minha frente [processo dos hemofílicos]. Houve um dia em que recebi em minha casa à noite uma carta que vinha da Presidência da República e que eu, em princípio, pensei que era correspondência oficial, daquela que às vezes recebemos. Pouco tempo depois abri. Era uma carta escrita à mão do drº Mário Soares, então Presidente da República, em que ele dizia que estava disponível para me defender de acusações muito más que na altura me eram dirigidas. E é verdade que a partir desse momento, e enquanto aquelas ameaças penderam sobre mim, pude contar com uma defesa muito especial, a dele. Era uma defesa de princípios e de valores, mas também uma defesa de solidariedade pessoal e de proximidade, de luta contra as injustiças. Foi o testemunho de solidariedade de uma pessoa que, do ponto de vista político, não está no mesmo sítio que eu, mas que sinto como próxima quando estão em causa princípios e valores fundamentais. Por isso, compreenderão que, para mim, o drº Mário Soares tem um valor muito especial, porque me ajudou a defender de uma ameaça de carácter pessoal. Quando foi publicado um livro do drº Proença de Carvalho sobre o processo que estava a correr, o drº Mário Soares, prosseguindo o gesto de solidariedade, esteve presente no lançamento, defendeu-me, publicamente, da ameaça. Sinto por ele uma gratidão muito pessoal. É um homem de coragem, a qualidade que mais aprecio nas pessoas. Coragem física e moral.

 
Firmeza solitária que afronta multidões
António Costa

Secretário-geral do PS

Na campanha eleitoral de 1979 eu fazia parte da equipa da JS que acompanhou a caravana de Mário Soares pelo país. Lembro-me que uma das primeiras paragens foi no Alentejo, já não me recordo em que terra. Ele estava a discursar na praça e houve um grupo de populares que procurou boicotar a intervenção do Mário Soares. E ele teve um gesto extraordinário. Parou de falar, saltou do palco, dirigiu-se directamente aos populares e calou-os. Pude ver como de facto as multidões se acobardam perante a firmeza solitária de quem as afronta. Aquele momento de afrontamento foi muito decisivo para o silêncio que se estabeleceu e para se poder recomeçar o comício de forma ordeira. Esse gesto de coragem pessoal e moral de Mário Soares impressionou-me bastante. Conservo uma fotografia recente, a do encerramento da campanha das primárias na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa: não é uma fotografia de vitória mas um gesto de companheirismo e, de alguma forma, de transmissão da continuidade histórica do PS que se há-de prolongar por muitos, muitos anos. Mário Soares sempre teve visão. Visão ainda no tempo da ditadura quando conseguiu afirmar a autonomia dos socialistas no quadro da oposição. Teve visão quando, em pleno PREC [Processo Revolucionário em Curso, Verão de 1975], percebeu que missão fundamental do PS era defender a liberdade e a democracia. Teve visão quando afirmou o desígnio europeu. E teve visão quando anteviu o descalabro do capitalismo de casino. Ao longo de toda a vida acho que a visão é aquilo que mais marca Mário Soares.

Assisti em privado à deliberação do líder
Lídia Jorge

Escritora

Assisti a uma deliberação do drº Soares. É uma coisa muito forte, muito marcante para mim, porque nunca imaginei alguma vez assistir a uma situação daquelas. Foi na campanha de Mário Soares para Presidente da República [eleições de 1986] quando Salgado Zenha tinha perdido por muito pouco, uma pequena margem em relação a Mário Soares. Um ou dois dias depois dessa primeira volta, a campanha de Mário Soares chamou os seus apoiantes e chamou os apoiantes de Salgado Zenha para em conjunto ser pensada uma estratégia para a nova campanha. Isso aconteceu na casa da família Soares, no Campo Grande. Fui convidada e assisti a essa reunião. Estava toda a gente muito confundida. Mário Soares percebia a dimensão do adversário que tinha, que era Freitas do Amaral. Ninguém sabia muito bem como enfrentar esse momento. E havia o grande problema de saber se o PCP ia, ou não, apoiar Soares. Tudo eram dúvidas naquele momento. Os estrategas que estavam à volta dele estavam muito, muito preocupados, não sabiam o que fazer. Há o momento em que esses estrategas passam para a sala ao lado e Mário Soares ficou sentado num sofá diante de mim. Mas, naturalmente, que ele não estava a olhar para mim. Ele não me via. Começou a falar em voz alta, sozinho sobre a estratégia que iria tomar. A certa altura diz qualquer coisa mais ou menos assim: “eles não têm outro remédio se não votar em mim e eu vou ganhar a Freitas do Amaral”. O que até ali era uma dúvida, ele transformou numa certeza. Colocou as mãos nos braços do sofá, levantou-se, com uma passada de leão passa para a outra sala, abre os braços e diz: “eu vou ganhar, porque eles vão votar em mim, não têm outro remédio”. A partir daí, as pessoas – lembro-me do Vasco Pulido Valente e do Fernando Lopes - começaram a trabalhar numa dinâmica de vitória. E eu assisti à deliberação do líder em privado. Guardo esse momento como um dos momentos de grande privilégio da minha vida. Foi uma lição de vida. Mário Soares é um vanguardista, mais do que um pioneiro. Sempre viu à distância o que, politicamente, seria o rumo do futuro. A maior vanguarda foi ter percebido que o futuro para Portugal seria a democracia, a descolonização e, aquilo que falhámos, o desenvolvimento. Na dinâmica dos dias de hoje, desde há duas décadas que ele lê para todos nós o que é o rumo do futuro. Percebe os perigos, as derivas, o que vai acontecer se enveredar por um determinado caminho. 

A capacidade de perceber o sentido das coisas
Pacheco Pereira

Historiador

Conheço Mário Soares há dezenas de anos e sempre tive com ele uma relação de proximidade, mesmo quando nos zangamos. Um dos aspectos muito interessantes das nossas relações são as zangas. E uma das zangas mais épicas que tive, zanga a sério, foi quando era presidente do grupo parlamentar do PSD e Mário Soares era Presidente da República. Fez uma viagem à Tunísia onde, na embaixada de Portugal, marcou um encontro com Bettino Craxi [dirigente socialista e antigo primeiro-ministro italiano] que tinha um mandato de captura europeu [acusado de corrupção]. Quando soube, telefonei ao primeiro-ministro Cavaco Silva a quem disse não achar normal que em território português fosse recebido um homem foragido da justiça europeia pelo que ia mandar retirar a delegação do PSD da visita. Assim foi feito e anunciado a Mário Soares. Ele ficou positivamente furioso, houve cenas com a comitiva mas o chefe da delegação do PSD, João Matos, abandonou de facto a visita presidencial. Soares quando chegou a Portugal fez uma série de declarações furiosas contra mim. Voltámos a falar, mas ele nunca esqueceu. No dia em que morreu o Bettino Craxi, escreveu-me uma longa carta sobre a razão que ele pensava ter tido para receber Craxi. O que é muito típico em Mário Soares, porque tem uma relação de amizade que em muitos casos se sobrepõe às razões políticas e devia a Bettino Craxi um conjunto de favores políticos no melhor sentido do termo, de apoios políticos nas circunstâncias difíceis de 1974/75. Mesmo apesar de ele estar fugido da justiça, quis recebê-lo. A zanga depois passou. Continuamos amigos e a ter uma grande estima pessoal. Soares tem uma intuição política corajosa, o que significa que tem como poucos a capacidade de perceber qual o sentido das coisas. E como é corajoso do ponto de vista político e físico, não se sente limitado, não teme os resultados da sua acção.    

Agarra-se a três ou quatro ideias
Maria João Avillez

Jornalista

Não me dá jeito reduzir o dr. Mário Soares a um só episódio. É como fechá-lo numa gaveta. Acho que a vida dele foi recheada de bons episódios porque foi recheada de vida, e a vida é mais forte que uma soma de episódios. Ele gosta tanto, tanto da vida, serviu-a tão bem, é uma pessoa intuitiva e curiosa, dois dons que o explicam muito bem. Gostaria de destacar nesta data tão maravilhosa dos 90 anos, a força, a curiosidade, a energia que o fez nunca virar costas, nem politica nem fisicamente. De ser capaz de enfrentar o que um observador, um comentador, um assessor diria não ser prudente. Estou-me a lembrar quando o PS lhe retirou o apoio pela recandidatura do general Eanes e ele sozinho, com três amigos, veio a ganhar o Congresso. Lembro-me de situações onde estava sozinho ou aparentemente sozinho, mas precisamente com a coragem, intuição, gosto e vontade política conseguiu derrubar o que era visto como quase impossível. Não é um elaborado mental, não tem paciência para grandes reflexões. Nunca leu um dossiê, tenho a certeza, o que não lhe fez transtorno nenhum porque se agarrou a três ou quatro ideias, essas sim fortíssimas, que são a liberdade, a Europa, a democracia. O que é o melhor tripé de um grande projecto político. O melhor episódio da vida do drº Mário Soares é ele próprio, o ser humano que é, o ser político que foi e que continua a ser porque gosta de intervir. Devo-lhe como cidadã o que ele fez em 1974 e 75, pelo modo como Presidente da República uniu a sociedade portuguesa, reconciliou as pessoas. Eu estava lá, eu vi. Como o vi a comer castanhas, em Braga, na campanha eleitoral para a primeira volta das presidenciais, quando a sondagem do Expresso lhe dava 8%. Continuou a comer olimpicamente, a descer a avenida central de Braga, continuando a comer castanhas, falando de umas coisas e de outras. O que explica uma personalidade. Estaria preocupado, mas estava a saborear o sol, as castanhas, e a pensar. Foi um hino à vida. Desta arrancada de Braga iniciou uma caminhada extraordinária para a vitória.


Sem problemas ele não sabe viver
Clara Ferreira Alves
Jornalista

Íamos num carro para um comício na Guarda, estava tudo muito enervado dentro daquele carro, mas ele calmíssimo disse: “se vamos à Guarda temos que ir ao Hotel Turismo comer um arroz de pato, que é muito importante”. Chegámos ao Hotel Turismo e, novamente diz: “não, antes do comício, vamos comer um arroz de pato ao hotel , depois vamos para o comício”. Chegamos ao hotel, o Mário Soares vira-se para o empregado e diz: “então, meu amigo, o arroz de pato”. E ele diz: “perdão, boa noite, não servimos socialistas”. Fez-se um silêncio brutal. Nunca mais me esqueci, “não servimos socialistas” é uma grande frase. Evidentemente que os socialistas foram servidos, porque o Mário Soares imediatamente se dedicou ao trabalho não só de converter aquele incréulo, aquele ser humano que não tinha descoberto as maravilhas do socialismo nem e a excelência de servir um arroz de pato a Mário Soares e aos seus camaradas, como comemos o arroz de pato e fomos para o comício calmamente. Nunca mais me esqueci disto, porque esta é a atitude existencial de Mário Soares. Assim foi sempre. Nenhum problema é um grande problema, nenhum problema é, afinal, um problema. E sem problemas ele não sabe viver. É disto que ele gosta. Da luta.
A força não é uma palavra que eu use aplicada a muita gente. É uma qualidade muito difícil, é uma qualidade rara. No caso de Mário Soares a força não é aquilo que se obtém, que se ganha ou com que se consegue concorrer contra um instante, contra o tempo. Em Mário Soares a força é uma predisposição diria saudável, optimista, é uma predisposição absoluta. É esta a palavra-chave, para nunca, nunca ser fraco.

Pediu-me um encontro com Fidel Castro
Joaquim Chissano

Ex-presidente de Moçambique

Conheci Mário Soares durante as conversações de Lusaca para a independência de Moçambique, em Junho de 1974. Lembro-me, sobretudo, do que hoje é vulgar como referência do primeiro encontro entre Mário Soares e a nossa delegação. Vejo-o a contornar a mesa, posta para separar as duas delegações, e em vez de estender a mão ao Presidente da Frelimo, Samora Machel, abre os braços e diz: “dê cá um abraço, camarada Samora”. Trata-o como camarada, como socialista, e abraçaram-se. Mais tarde, ele disse que o Presidente Samora e ele convergiram, que se vieram a encontrar, mas na verdade foi ele que contornou a mesa e ofereceu o abraço, que o Presidente Samora correspondeu, quebrando todo o protocolo. Com este gesto, Mário Soares deu a entender que queria negociar para a independência de Moçambique. Tivemos, uma vez, uma entrevista a pedido dele, em que conversámos, e isso foi filmado, sobre o passado, as negociações de Lusaca. Estava orgulhoso por ter participado comigo nas negociações de Lusaca, ao ponto de ter exagerado, dizendo que não tinha sido com o Presidente Samora Machel que tinha discutido, mas sim comigo, o que para mim foi um elogio. Quando só tivemos um aparte de alguns minutos na residência onde ele estava hospedado. Fomos para o jardim e, às tantas, ele pede-me um favor: que, em nome dele, eu devia pedir ao Presidente Fidel Castro para o receber, para fazer a mesma conversa, filmada. Fiz isso. O Presidente Fidel Castro disse-me que o problema era o tempo para se preparar para isso. Transmiti a resposta. Tivemos outros encontros, mas para mim o mais importante são os contactos pessoais. Contactou-me para ser membro do júri, que presidia, de um prémio da Unesco. Na primeira reunião apresentámo-nos uns aos outros. Apresentei aos restantes Mário Soares como combatente contra a ditadura em Portugal, como um democrata, e um homem contra o colonialismo, que trabalhou connosco para a descolonização.

Por ser corajoso, sabe discutir
Francisco Pinto Balsemão

Jornalista, fundador do PSD

Mais do que uma história, vale a pena recordar um conjunto de factos que levaram à possibilidade de fazermos a revisão constitucional de 1982. A Constituição de 1976 era para nós provisória, na medida em que o poder militar se mantinha, e precisávamos de ser, finalmente, uma democracia de padrão ocidental, total, igual às outras democracias europeias. Com Mário Soares, então líder do PS, sendo eu o líder do PSD e primeiro-ministro, foi muito fácil encontrar um entendimento sobre uma questão tão complexa. Mário Soares não é uma pessoa de pormenores. Havia três ou quatro objectivos muito concretos, nomeadamente os que respeitavam ao Conselho da Revolução e que implicavam, também, a criação do Tribunal Constitucional. Em pouco tempo acordámos sobre aquilo que era essencial. Depois, há sempre os juristas que tentam complicar as coisas, neste caso foi o drº Almeida Santos que quis ser um perfeccionista e complicou um pouco, mas não o suficiente para que o grande acordo e os timings não fossem cumpridos. Isto abona a favor de alguém, que era líder da oposição na altura, que teria como tentação complicar a vida a quem estava no poder mas que, pelo contrário, percebeu que eram objectivos nacionais e por isso conseguiu chegar a um consenso. E esses consensos, hoje em dia, continuam a ser importantes. Como foi, aliás, o consenso criado à nossa adesão à Comunidade Europeia. Um trabalho que já vinha de trás, que foi intensificado durante o meu tempo de governo mas sempre com o conhecimento do principal partido da oposição. Em minha opinião, a palavra que define Mário Soares é coragem. Um homem que sempre demonstrou coragem em toda a sua vida. Quer no tempo da ditadura, que o levou à prisão e a ser deportado. A coragem que teve quando se apercebeu que o PS não podia ser o compagnon de route do PCP e teve a coragem de liderar, com Sá Carneiro e outros, uma retoma do sentido democrático da revolução. Coragem que também continua a revelar, às vezes com muita irreverência, com o que eu discuto com ele como ataques de esquerdite. Uma das grandes vantagens e qualidades de Soares é que, por ser corajoso, sabe discutir e aceita opiniões diferentes.
 
A democracia é a sua grande bandeira
Artur Santos Silva

Presidente do Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian

Encontrei, no aeroporto do Porto, o dr. Soares e a drºa Maria de Jesus logo a seguir a ele ter feito uma conferência na Faculdade de Medicina quando umas sondagens lhe davam 8% para as eleições presidenciais de 1986. Nesse mesmo dia, tinha lido uma newsletter mensal, que era feita pelo professor Alfredo de Sousa sobre a economia, a política e aspectos sociais da conjuntura. Na newsletter era referido que Mário Soares ia ganhar as eleições. Que ia ter uma primeira volta complicada, mas acabaria por derrotar os outros candidatos, Francisco Salgado Zenha e Maria de Lurdes Pintassilgo. E que, na segunda volta, inevitavelmente, uma parte que poderia votar no professor Freitas do Amaral iria votar no drº Soares. O raciocínio estava muito articulado. Eu, amigo há três gerações da família Soares, e apoiante de Mário Soares, que considerava fundamental que o primeiro Presidente da República civil fosse um democrata, que muito tinha lutado contra a ditadura e feito muito pela democracia, fiquei muito contente. Mário Soares nunca anda cabisbaixo e, apesar das sondagens muito negativas, disse-me que tinha sido muito bem recebido na Faculdade de Medicina. Que estava muita gente, que lhe tinham feito muitas perguntas. Dei-lhe a newsletter para ler na viagem para Lisboa, dizendo-lhe que ia ficar ainda mais contente, pois ia encontrar um bom prognóstico, que ia ganhar as eleições. Durante a viagem veio ter comigo todo contente, dizendo que “isto vai ser mesmo assim”.  Mário Soares é um democrata indomável, não há nada que o trave em relação às suas convicções. A democracia é a sua grande bandeira. Em relação às suas convicções do que deve ser a democracia, ninguém consegue domá-lo, condicioná-lo.

Puxar-se ao limite
Joana Amaral Dias

Psicóloga

A história que mais me marcou da convivência com Mário Soares foi a forma como ele executou a campanha das eleições presidenciais de 2006. Há uma altura na campanha em que eu acho que Mário Soares não se importava de ter tido uma morte gloriosa. A certa altura, a campanha atingiu um grau de violência física, de cansaço e uma exigência brutal. Lembro-me particularmente de um comício no Porto onde Mário Soares estava claramente muito envolvido durante a oratória, na retórica. Estava muito acelerado mesmo. E o público também estava muito entusiasmado. Acho que há ali um momento em que Mário Soares faz-se por puxar por si próprio, por se levar ao limite. O que caracteriza Mário Soares é a palavra intuitivo. O que o marca nas suas relações sociais e pessoais é essa capacidade de intuição. O que é fundamental na política. As pessoas às vezes pensam que a política é argumentação, retórica e ideias, mas a política é, em primeiro lugar, instinto e impulso. Conservo a foto da apresentação do manifesto para a juventude no Éden, em Outubro de 2005, que representa a capacidade de Mário Soares em dar o espaço para que a juventude tivesse um manifesto próprio, ideias suas, específicas, que não tinham de ser exactamente consonante ou totalmente decalcadas daquilo que ele defendia. Isso significa que Soares reconheceu que havia novos problemas e novas formas de os tratar.

Um silêncio de cortar à faca
Miguel Sousa Tavares

Jornalista

Soares é um homem que ama muito a vida, em todos os seus aspectos, e, para o bem e para o mal, mete-se em tudo até ao pescoço. Acompanhei como jornalista, basicamente ao serviço da RTP, várias vezes o drº Mário Soares quando era primeiro-ministro e, principalmente, como Presidente da República. Tivemos alguns episódios engraçados, porque é um viajante e tinha e tem a sua graça. Uma vez demos uma volta ao mundo, vínhamos de Tóquio para Nova Iorque num avião comercial norte-americano. O drº Soares vinha em primeira classe, eu vinha na intermédia, que era a executiva, tinha duas americanas ao meu lado e, à direita, estava um lugar vazio. Acaba o jantar e vejo o drº Soares, vinha a fumar o seu charuto, que só se podia fumar cá atrás. Senta-se ao meu lado, manda um olhar para a americana que estava à minha esquerda que, era, digamos, como uma espécie da “coelhinha do mês” da Playboy. Ela estava a conversar comigo e pergunta-me: “quem é esse tipo”. Disse-lhe que era o Presidente da República de Portugal. Ela respondei: “Então, eu sou a rainha da Inglaterra”. Soares perguntou-me o que se passava, achou muita graça, mas ficou picado. Foi lá à frente, chama o ordenança, e aparece com uma daquelas fotografias oficiais com a faixa e autografa a fotografia à senhora. Nessa viagem, também em Nova Iorque, depois de discursar na Assembleia Geral da ONU, em plena hora de ponta, a comitiva pára. O drº Soares sai do carro e põe-se se a caminhar a pé, o que é típico nele. Entra numa livraria, depois noutra loja. A segurança americana ficou histérica. Atravessaram os carros, fecharam a rua, parecia um filme policial. Um dos agentes dizia que “o vosso Presidente é maluco, é maluco”. Um pandemónio enorme. O drº Soares olha para aquilo e diz-me: “oh Miguel, veja lá o pandemónio que estes gajos montaram”. Nem se apercebeu que foi ele que montou o pandemónio. Ao contrário do actual Presidente, ele estava-se nas tintas para a segurança. A fotografia que escolho é do debate com o Zenha, minutos antes de ir para o ar. O ambiente era muito mau. Não se falavam. Cumprimentaram-se: “olá Mário”, “olá Francisco”. Era um silêncio de cortar à faca. Tinha a noção que era um momento histórico que ia decidir as presidenciais [de 1986].

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