Democracia directa e representação

Só uma incompreensível cegueira obscurecerá a crise do actual modelo de representação política.

De repente, a “participação direta” dos cidadãos na vida política é apresentada como o “ideal tipo” de corrupção democrática. A coisa é absurda a vários títulos porque a democracia começou como “democracia direta”, numa Atenas em que, todos os meses, os cidadãos adultos se juntavam na àgora para deliberar sobre todos os assuntos, assim instituindo o “domínio pelo povo”, i.e., a “demokrateia”.

Aos atenienses repugnava-lhes a ideia de serem governados por terceiros e, por isso, a participação direta na governação era condição mínima de honorabilidade. Diz Péricles: “Nós não consideramos o cidadão que não participa das questões públicas uma pessoa sem ambições mas sim um inútil.”

Bem entendido, a Atenas de Péricles não teria mais que trinta mil cidadãos e as suas assembleias eram dominadas por uns poucos que verdadeiramente se conseguiam fazer ouvir pela sua clareza, bom senso e erudição, ainda que todos pudessem ser selecionados, por sorteio ou eleição, para a ocupação de cargos governativos, com prazo excecionalmente curto, com elevadíssima rotatividade e mediocremente pagos. E claro que a Pólis ateniense tem muito pouco a ver com as cidades e as comunidades políticas de hoje. O tamanho estabelece a diferença essencial. Mas também a copresença do mundo a todos os pontos do mundo, num único tempo presente, introduz no espaço político contemporâneo uma qualidade incomensurável com aqueles tempos.

Por sua vez, a democracia direta de Atenas não era incompatível com a razão e a deliberação públicas, já que, como lembra Péricles, “nós, Atenienses, somos capazes de opinar sobre todos os temas, e, ao invés de encararmos as discussões como um obstáculo para a ação, consideramo-las como o preliminar indispensável para qualquer ação prudente e sábia”. A retórica, ou a deliberação pública, era essencial à cidadania ateniense, sendo-lhe verdadeiramente constitutiva, ao contrário, por exemplo, da cidadania espartana, onde as deliberações eram tomadas não pelo fulgor da palavra e do voto mas (literalmente) do grito mais poderoso. Um comunitarismo cívico profundo e uma prática retórica persistentes estabeleciam a principal mediação racional-política da governação ateniense.

Sem dúvida, a razão pública necessita de estruturas de mediação, de reconhecimento, valor e sentido, para que possa ocorrer. Mas a identificação da democracia direta com a ausência de mediações racionais constitui, simplesmente, um erro de análise, e tanto mais profundo quanto mais restrito é o âmbito deliberativo em questão. E acontece, ainda, que nem todas a mediações são boas. Por exemplo, a mediação corporativa das decisões políticas é uma má mediação. Como é má uma mediação oligárquica ou partidocrática. Para além disso, a mediação é tanto pior quanto o universo político em questão é reduzido. Por exemplo, não há nenhuma razão democrática para que uma escola, com um universo de umas escassas centenas de decisores (ou nem isso), não possa ser governada de modo direto, mediada retoricamente pela razão e deliberação públicas, comummente aceites e enraizadas, ao invés de por um número limitadíssimo de representantes que se instituem como poderes fácticos inamovíveis e definitivos.

A magna questão parece ser, então, a de saber se as democracias constitucionais contemporâneas, profundamente complexas e comunicacionalmente evanescentes, podem ser governadas por métodos de decisão direta dos cidadãos. Deve lembrar-se que isso já é feito, em parte, em algumas das maiores dessas democracias, de modo parcial mas intenso. Enquanto votavam nas últimas eleições presidenciais, os americanos, por exemplo, votaram, simultaneamente, em cerca de 150 referendos locais ou estaduais, sobre os mais diversos assuntos, desde o casamento entre pessoas do mesmo sexo a questões orçamentais ou à legalização da marijuana.

Escusado será dizer que um exclusivo de decisão política direta nos estados constitucionais contemporâneos é praticamente impossível e indesejável. A representação enquanto estruturante de mediação da vontade e da soberania popular ainda é o melhor modelo de governação, porque é o que melhor lida com o tamanho e a complexidade das suas exigências. No entanto, só uma incompreensível cegueira obscurecerá a crise do atual modelo de representação política, que se instancia, desde logo, na falsificação generalizada do mandato popular, por virtude da cupidez política e da emergência de poderes fácticos antidemocráticos capazes de subverter a própria natureza da representação. E só a cegueira não deixa perceber que a modelação da representação pela decisão direta pode dar mais força à própria representação e, claro, à democracia. 

Mas, indo mais fundo, quero sugerir aqui que a rejeição da democracia direta constitui (onde ela pode efetivamente ser instanciada, através de um mínimo de mediação racional e deliberativa), como no século XIX, um reflexo da desconfiança efetiva na democracia enquanto soberania do povo e sua presença ao centro da decisão e da ação políticas. A emergência de novas soberanias não democráticas, particularmente a soberania dos mercados e das grandes indústrias de intermediação financeira, parece estar a enfraquecer, em algumas elites políticas e sociais (e até em alguns setores populares), a força moral da democracia.

Por exemplo, embora seja claro, no nosso ordenamento constitucional, que “a soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição” (fazendo com que a representação constitua a forma da soberania e não a própria soberania), há quem defenda que o que é necessário, cada vez mais, à nossa democracia, é que a forma da soberania se afaste da sua fonte material, depurando a mediação representativa até um nível, quiçá, monárquico/majestático, transformando “misticamente” o representante na fonte majestática da própria soberania, ao modo inglês, para quem a soberania reside não no povo, mas no parlamento e no rei.

Acontece que, na nossa constituição, para além da representação também se preconiza o aprofundamento da democracia participativa (artigo 2) ou a participação direta e ativa dos cidadãos, “dos homens e das mulheres”, na vida política (artigos 48 e 109), “condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático”. Mas mais: ao consagrar o direito de resistência, a CRP faz um apelo aos cidadãos para que defendam, directamente, o país de ofensas aos “seus direitos, liberdades e garantias” (artigo 21.º).

Temos, então, que a ideia segundo a qual as eleições legislativas refulgiriam como o momento único e definitivo da legitimidade do poder parlamentar e governamental não tem sustentação democrática/constitucional. A participação direta dos cidadãos é outro importante instrumento de expressão da vontade popular.

Por outro lado, a legitimidade do parlamento depende, antes de tudo o mais, da realização de eleições livres e justas, capaz de aferir da intencionalidade formal da vontade, ou soberania, popular. Mas não fica por aí. O parlamento tem de exercer uma conexão racional e materialmente verdadeira entre as suas condições de elegibilidade, entre o contrato que foi sufragado maioritariamente, e a sua execução. Um parlamento que executasse o contrário do programa, do contrato, com base no qual foi eleito seria, é, um parlamento fraudulento. Bem entendido, o parlamentar-representante-delegado não é eleito em nome dos interesses particulares dos seus eleitores, mas em nome de certa ideia de bem-comum. No entanto, esta ideia de bem-comum não pode ser completamente desligada, “desvinculada”, das “concepções políticas e ético-sociais dominantes”, obrigando o cumprimento daquilo que se pode chamar um “princípio da coerência”, pelo qual se “exige que os deputados e partidos se mantenham, quanto às suas decisões, dentro das linhas gerais do programa político com que se apresentaram na campanha eleitoral. Destes vínculos resultam questões acerca de condutas parlamentares legítimas, e isto não só em relação aos deputados individualmente mas também aos partidos que actuam no seio do parlamento” (ZIPPELIUS, Reinhold, 1997, Teoria Geral do Estado, Ed. FCG, pp. 270-271). 

Claro que é habitual, e quase sempre falso, que os políticos indiquem como justificação para as mudanças programáticas sufragadas pelos eleitores a alteração superveniente das circunstâncias. De facto, há que atender a um certo nível de flexibilidade na ação política concreta, que sempre poderá ser avaliada eleitoralmente pelos cidadãos. Mas isso é, em quantidade e qualidade, bem diferente de uma inversão completa do modelo, ou do contrato, com base no qual se receberam os sufrágios. O problema, nesses casos, é quando se substitui um mínimo de deliberação racional por uma completa inversão de valores e, até, ontologias políticas. Quando o mundo se vira de avesso, a mentira se torna verdade e o branco se torna preto.

Ora, um incremento da democracia direta no nosso ordenamento legislativo poderia obstar, em muito, a estas recorrentes falsificações da vontade soberana do povo (pelas quais se procede a sucessivas ruturas, no seu sentido material, da legitimidade democrática), que não podendo ser resolvidas por via da delegação-representação (entretanto usada para fins inversos àqueles para os quais foi constituída), o poderiam ser através da participação direta e ativa dos cidadãos.

Professor do ensino secundário, doutorado em Filosofia e especializado em organizações educativas e administração educacional

  

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