Humberto Delgado é “incómodo ainda hoje para muitas pessoas”

Frederico Delgado Rosa investigou sobre o “General Sem Medo”. Garante que o avô foi morto pela PIDE com “sucessivas contusões cranianas” e não a tiro.

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Frederico Delgado Rosa, neto de Humberto Delgado Enric Vives-Rubio

Humberto Delgado foi barbaramente assassinado pela PIDE com pancadas na cabeça a 13 de Fevereiro de 1965. Com ele estava a secretária Arajaryr Campos, que terá sido estrangulada, na cilada montada pela polícia política do Estado Novo, que foi dirigida no terreno pelo chefe de Brigada Rosa Casaco e materialmente executada por Casimiro Monteiro.

Nascido quatro anos depois, o neto de Humberto Delgado, Frederico Delgado Rosa, pesquisou a vida e a morte do avô e, em 2008, na Esfera dos Livros, publicou Humberto Delgado, a biografia do General Sem Medo. Nesta obra, agora reeditada, revela os reais dados do processo espanhol, registados quando os dois corpos foram encontrados a 24 de Abril de 1965, já em avançada decomposição, em Villanueva del Fresno.

Nascido a 15 de Maio de 1906, Humberto Delgado, oficial de aeronáutica que ascende mesmo a general, foi um alto quadro do Estado Novo. Cinco anos como adido militar nos EUA e chefe da missão militar portuguesa na NATO, convertem-no à democracia. Em 1958 foi candidato a Presidente da República contra o regime, derrotado nas eleições fraudulentas, as últimas presidenciais directas durante o Estado Novo. É nessa campanha que, numa conferência de imprensa e perante a pergunta sobre, se ganhasse as eleições, o que faria ao presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar, Delgado responde: “Obviamente, demito-o.”

Humberto Delgado está esquecido?
Não, de todo. Acho que Humberto Delgado tem tido sucessivos reavivamentos de memória. Aliás, a comunicação social tem contribuído activamente para isso. É um tema que tem sempre vindo à baila e cada vez que ressurge é com bastante intensidade. Houve sempre momentos fortes, desde a transladação para o Panteão Nacional, o centenário do nascimento, os 50 anos das eleições de 1958 e do “Obviamente, demito-o”, tem havido muitas ocasiões que têm trazido a sua memória à superfície.

Tem defendido que houve um suavizar do assassinato de Humberto Delgado aquando do julgamento após o 25 de Abril?
Sem dúvida nenhuma. O facto de o tema Humberto Delgado nunca ter desaparecido não invalida o facto de estarmos, há mais de 30 anos, a viver uma mentira, que foi deliberadamente fabricada pelo Tribunal de Santa Clara, com o acórdão de 1981 que inocentou toda a hierarquia superior da PIDE, todos os elementos da brigada, com excepção do autor material do crime.

Casimiro Monteiro.
Que foi transformado pelos juízes também no único autor moral do assassinato de Humberto Delgado.

Há um erro histórico nesse acórdão, não é?
Não há um erro. Não há ali verdades. Só há mentiras. Aquilo não é um acórdão, é uma verdadeira farsa que distorceu deliberadamente a verdade material do crime, que sonegou provas, que sonegou tudo o que veio do processo realizado em Espanha em 1965, tudo isso foi abafado, contrariado, rejeitado, pelos juízes portugueses.

E por que é que isso aconteceu?
Porque era uma verdade inconveniente que mostrava que Humberto Delgado não tinha sido morto a tiro, mas sim por sucessivas contusões cranianas.

Portanto, foi espancado.
Ele foi espancado brutalmente no crânio. Portanto, isso é uma coisa que não é uma morte instantânea. Não podia ter sido um impulso homicida do senhor Casimiro Monteiro. Envolvia, forçosamente, toda a brigada.

Por assistirem?
Por tudo. Eles ficaram pávidos ou impávidos perante essa ocorrência. Essa pergunta tem de ser colocada. Os juízes não a colocaram porque afastaram, desde logo, os factos apurados pelo conjunto de perícias forenses e médico-legais espanholas, as quais descartam liminarmente a hipótese de que Humberto Delgado tenha sido assassinado a tiro. Portanto, a Justiça portuguesa do pós 25 de Abril, numa espécie de genealogia invisível entre a ditadura e a democracia, querendo preservar e ilibar a figura sacrossanta de Oliveira Salazar, já para não falar do ministro do Interior, Alfredo Santos Júnior, a quem respondia também o director da PIDE, Silva Pais, tinha ali essa verdade inconveniente que envolvia directamente o chefe da brigada, Rosa Casaco, e por conseguinte o superior hierárquico que era o inspector Álvaro Pereira de Carvalho, Barbieri Cardoso, o número dois da PIDE, e Silva Pais, o director da PIDE, até chegarmos a Salazar.

Também detectou erros em relação à forma como foi morta a secretária de Humberto Delgado, Arajaryr Campos, cuja morte foi praticamente ignorada no processo?
Relativamente à morte de Arajaryr Campos, o processo não foi conclusivo, porque o cadáver de Arajaryr Campos sofreu diversas mutilações naturais, inclusive animais que lhe devoraram partes significativas do cadáver, incluindo as lesões mortais. O cadáver de Humberto Delgado também tinha sido mutilado por agentes naturais, mas não foi tanto como o de Arajaryr Campos.

Anos mais tarde, Rosa Casaco dá uma entrevista ao Expresso. Como vê essa entrevista?
Rosa Casaco teve uma vez mais a oportunidade de expor as suas efabulações e mentiras deliberadas sobre o que tinha acontecido realmente em Espanha. Não condeno jornalistas por darem a voz a uma pessoa que tem o lugar na história de Portugal que tem Rosa Casaco, que foi o chefe da brigada que assassinou Humberto Delgado. É uma oportunidade jornalística que não sei por que critérios se poderia descartar. Compreendo isso perfeitamente.

Por que razão acha que o Tribunal de Santa Clara teve a posição que teve em 1981?
Eu não tenho dúvidas em afirmar que foi por convicção salazarista por parte dos juízes que compunham aquele colectivo de juízes daquele tribunal militar.

Mas tem provas concretas do que diz?
É a questão mais delicada que me pode colocar. Eu não vou dizer os nomes deles, está no meu livro. Mas sei por fonte segura que pelo menos em relação a um deles isso era assim, a convicção salazarista, um juiz que teve um papel muito protagonista dentro do colectivo. Aquilo que me leva a afirmar - mais do que a própria documentação, porque é evidente que não vamos encontrar em nenhum documento escrito “este senhor era salazarista - é uma leitura política daquele processo. E ela só me pode levar a esta conclusão, que é uma conclusão também histórica, mas é-o através de uma leitura política.

Como estudioso da vida de Humberto Delgado, o que correu mal em 1962 no assalto ao quartel de Beja?
Foram muitas coisas. Mas do prisma de Humberto Delgado, uma das coisas que correram pior foi a própria escolha do Regimento de Infantaria de Beja como cenário do arranque militar. Outra das dificuldades foi a própria entrada de Humberto Delgado em Portugal em cima do acontecimento.

Ele entra pelo Sul, vindo do Norte de África.
Sim. E quando ele sabe que é Beja, para um general, um estratego, era a pior escolha possível para criar a primeira zona libertada em Portugal e para fazer um arranque. Foi um erro do ponto de vista militar. E o que correu pessimamente, foi no próprio quartel de Beja, o comandante dar um tiro em Varela Gomes, que chefiava a ala militar da revolta.

E em Argel o que correu mal? Humberto Delgado era uma pessoa difícil?
É, mas isso não explica por que é que as coisas correram mal. A verdadeira razão de fundo é o facto de Humberto Delgado, através da Frente Patriótica de Libertação Nacional, ter feito uma aliança com o PCP, que era para Humberto Delgado uma aliança estratégica no sentido de que todos os mecanismos seriam postos em movimento para preparar a revolta militar o mais rapidamente possível. Mas isso não era o verdadeiro objectivo do PCP. E as dificuldades começaram com Humberto Delgado em Argel, quando ele começou realmente a querer avançar, com a ajuda do Presidente, Ben Bella, que disponibilizou meios para fazer entrar Humberto Delgado em Portugal.

Isso já anos depois de Beja.
Em 1964, para assumir ele directamente o comando de um regimento, que era aquilo que ele já em Beja queria, só a sua entrada atrasada não permitiu. A partir daí começaram todos os obstáculos a ser postos em cena por quem não se queria essa acção armada.

Como vê hoje essa posição do PCP?
É o problema trágico não apenas do PCP, mas de toda a oposição. Foi a verdadeira tragédia da oposição portuguesa. Era esse medo de envolvimento com o universo militar. Fazer aquilo que veio a ser feito com o 25 de Abril. Humberto Delgado foi o mais genuíno precursor do 25 de Abril que era o que ele queria. Já em 1958 aquilo que ele queria era fazer um 25 de Abril.

Nas eleições.
Durante a campanha, Humberto Delgado já sabia que aquilo ia ser uma fraude. E, portanto, ele já estava durante a campanha eleitoral a preparar uma revolta armada contra o regime. Ele é o verdadeiro percursor dessa ideia, mas ela por razões políticas, por razões de estatuto burguês, intelectual e outros, não estava na convicção da oposição portuguesa dos mais variados quadrantes. Apesar de ter muitos apoiantes e muitas pessoas que nunca o abandonaram até ao fim e que sempre acreditaram nele como o Presidente da transição para a democracia, havia os que tinham sempre medo quando Humberto Delgado vinha com as suas aventuras. E essa mentalidade foi fatal para a oposição portuguesa e isso é que arrastou a ditadura.

Qual a imagem que há hoje a reter de Humberto Delgado?
Sem dúvida alguma é a imagem do homem que estava disposto a dar a vida pela liberdade. Não porque ele tenha ido para a cilada de Badajoz a correr de peito para a bala. Ele não ia minimamente convencido que pudesse ir ao encontro da PIDE. Ele estava entusiasticamente confiante que ia ao encontro de oficiais dissidentes do regime. No entanto, toda esta ideia de preparar uma revolta militar contra o regime comportava riscos de vida, de prisão, de sangue. Isso é o que Humberto Delgado representa, é esse ponto de entrega, de risco de vida para dar a liberdade os portugueses. Por isso é que ele é tão incómodo ainda hoje para muitas pessoas, que sabem que durante a ditadura não estavam dispostas a isso e não queriam isso.

E no momento que o país vive, como é que essa imagem pode ser aproveitada?
Ao dizermos que Humberto Delgado estava disposto a dar a vida pela liberdade, dizemos que é um homem que tem um ideal e que é capaz de dizer que nos devemos sacrificar por um ideal. Ele foi um idealista, mas no melhor sentido da palavra, de que os sacrifícios são para ser tomados, não num espírito de passividade, mas num espírito de actividade, que devemos ser activos na maneira como nos sacrificamos por um ideal, corajosos e dispostos a riscos.

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