Crónicas adiadas

Como o decurso do tempo é bom conselheiro, não quero adiar responsabilidades, mas a crónica

A notícia, ou melhor, o boom de notícias da detenção e posterior encarceramento do ex-primeiro-ministro José Sócrates marcaram a agenda da habitual rubrica que incluo nesta página, Correio de leitores-provedor. Resolvi, por isso, hoje ceder este espaço totalmente aos leitores.

Obviamente, o panorama do mundo mediático, no qual se insere o PÚBLICO, e os próprios comentários dos leitores oferecem temas de sobra para a crónica de fundo com que, normalmente, abro esta página. Mas como o decurso do tempo é bom conselheiro, não quero adiar responsabilidades, mas a crónica.

O "primeiro silêncio do PÚBLICO"

No dia 22 de Novembro, alguns leitores manifestaram o seu espanto sobre o silêncio do PÚBLICO (edição papel) acerca da notícia da detenção do ex-primeiro-ministro José Sócrates.

O email que transcrevo abaixo é exemplificativo dessa estupefacção. Através do correio electrónico foi dada aos leitores a explicação plausível: quando surgiu a confirmação da notícia na noite de sexta-feira, a edição em papel do jornal estava fechada. A edição online do PÚBLICO, desde logo, acompanhou os desenvolvimentos da "notícia-bomba" da noite. Contudo, eu próprio tenho pena que na sua edição de papel do dia seguinte (23/11/2014) o PÚBLICO não tenha justificado o silêncio sobre o assunto na edição papel do dia 22. Trabalhar, como acontece, sobre os dois suportes (papel e digital) conforma, porventura, automatismos de que existe um continuum entre as duas versões.

O que pode ser já um dado adquirido para a redacção do jornal não o é para o universo dos leitores, como as recentes reacções o comprovam e levam depois a outras interpretações, como esta deste leitor:  

"Ao ler o vosso jornal de hoje fiquei estupefacto por não ver qualquer referência à detenção do ex-primeiro-ministro. Infelizmente tenho notado que, ultimamente, a característica de independência que me levou a ser assinante do jornal me tem merecido uma crescente interrogação. Gostaria de conhecer uma vossa explicação convincente sobre o acima descrito."

As ilustrações fotográficas também escrevem?

Outro comentário de um leitor a propósito de fotogravuras no contexto do texto: "O assunto é já ‘estafado’, mas, assim como os seus fautores não desistem, também nós, leitores, não devemos fazê-lo na denúncia dessas práticas. Refiro-me, neste caso, à colocação de uma fotografia a duas colunas para ilustrar o texto de Manuel Carvalho ‘José Sócrates, uma luzinha que se apaga’, na página 15 do PÚBLICO de domingo (23/11). Que mostra essa foto? Pois a fachada de um prédio onde se lê  a palavra FREEPORT!  Que faz ali aquela fotografia? Ilustra alguma coisa do que está escrito?... Qual é a intenção? Mal vai o ‘meu’ jornal por estes caminhos! Não vivemos num mundo ‘asséptico’, de ‘santos’, mas, que diabo, com tantos ‘demónios’ também será exagero e... muito pouco ético."

As milhentas leituras das notícias

Não deixa de ser interessante registar como alguns leitores, de alguma maneira, à margem do foco central das notícias sobre a detenção e do posterior encarceramento de José Sócrates, vêm chamar a atenção para interpretações porventura não directamente incluídas na escrita de textos e notícias. Exemplos:

Um advogado goês e a trabalhar sozinho

1.

"‘No melhor pano cai a nódoa’, dirão alguns. Mas há ‘nódoas’ que são dificilmente aceitáveis da parte de um jornal que se quer ‘de referência’. Sobretudo se nessas ‘nódoas’ sentimos relentos de teorias rácicas totalmente intoleráveis.

Assim, no PÚBLICO datado de segunda-feira 24 pôde ler-se num dos subtítulos do título principal da primeira página que ‘João Araújo, o advogado de defesa goês do ex-primeiro-ministro, trabalha sozinho’. E, da mesma maneira, pôde ler-se no texto da página 3, 8.ª e 9.ª linhas: ‘João Araújo — natural de Goa e agora advogado de José Sócrates.’

Algum dia passaria pela cabeça de um jornalista escrever a propósito de outro qualquer advogado sediado em Lisboa: o advogado de defesa açoriano, minhoto ou alentejano do ex-primeiro-ministro? E muito menos: o advogado de defesa cabo-verdiano, angolano ou brasileiro do ex-primeiro-ministro.

Que ideia chocante e perfeitamente intolerável é esta de ver os media desta pretensa nação que ‘deu novos mundos ao mundo’ começarem a dizer que António Costa é de origem goesa e agora que João Araújo é goês? Vão os media portugueses começar a evocar as origens geográficas, sociais, étnicas ou confessionais (e não sei que mais...) das pessoas evocadas, quando isso não tem nada, ‘nadíssima’, a ver com o assunto tratado?

Estará o jornalismo em Portugal a resvalar preocupantemente para um segregacionismo em que os ‘portugueses de raiz’ serão distinguidos dos outros? Destes outros que precisamente escolheram ser portugueses, quando os tais ‘portugueses de raiz’ nem sequer escolheram a nacionalidade que lhes atribuíram à nascença? Sombrio e inquietante horizonte!

E já agora: dizer que João Araújo ‘trabalha sozinho’ não é uma maneira inadmissivelmente hipócrita de insinuar que ele não faz parte dos ‘grandes escritórios’ de advogados, daqueles que dominam a cena político-económico-judiciária, sendo portanto um ‘pequeno advogado’ de pouca envergadura?

Em termos de escrita e de titulação, o PÚBLICO de segunda-feira 24 deu provas infelizes de descuido editorial e de grande irresponsabilidade social."

2.

"Na capa da edição de 24/11/2014, em grandes parangonas pode ler-se ‘João Araújo, o advogado goês do ex-primeiro ministro, trabalha sozinho’.

Não percebo esta notícia, nem a sua importância para os leitores. Vejamos:

1. ‘Advogado de defesa GOÊS’? Goês é um adjectivo?

2. Tal palavra qualifica um advogado? Se não qualifica, porque a introduziram? Será que o jornalista que assinou a peça será um jornalista ‘português branco’?

3. Será que tal qualificativo se destina à campanha política fascista de associar a António Costa, também goês, a processos judiciais?

4. ‘Trabalha sozinho’ o que quer significar em termos de informação? Que se trata de um zé-ninguém, o que, aliás, condiz com o qualificativo ‘goês’, profissional menor ainda por cima não branco?

Lamento sinceramente que a qualidade jornalística do PÚBLICO tenha descido tão baixo."

A "cor da pele de António Costa"

3.

Como se percebe, ainda no enquadramento do título da capa do PÚBLICO de 24/11/14, o artigo da jornalista São José de Almeida "António Costa, um político para além da cor da pele", inserido na mesma edição, a página 10, despertou igualmente comentários de leitores. Solicitei à jornalista a sua reacção. Ei-la:

"O título do texto foi pensado e tem como objectivo precisamente aquilo que está expresso nele, que António Costa é político, num país em que há racismo — mesmo que muitas vezes envergonhado, subliminar, não-dito —, apesar de ter uma cor de pele que não é o padrão dominante num país europeu como Portugal.

O título diz respeito a um texto que precisamente aborda a questão do racismo e que parte do pressuposto — que é o que o leitor comunga — de que as diferenças de cor de pele não limitam e que a igualdade deve ser a norma entre todas as pessoas. Só que, num país em que há racismo, o ultrapassar dessa discriminação é um facto que importa explicar. Foi isso que o PÚBLICO fez. Contextualizar a questão, explicando qual a origem não europeia de António Costa e como essa origem se enquadra cultural, antropologicamente e historicamente em Portugal.

Só mais uma coisa: não discriminar em função da cor da pele ou de qualquer outra característica de identidade não é omitir e não falar dessa característica, é antes assumi-la e tratá-la em igualdade e sem vergonha de a nomear."

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