Costa, a cada dia, mais cativo de si mesmo

Costa, para sobreviver só lhe resta uma alternativa: tornar-se à força de toda e qualquer entorse, Primeiro-ministro.

1. A ambiguidade e o tacticismo da actuação e do discurso de António Costa chocam de sobremaneira. A sua incapacidade de ter uma posição clara e consistente sobre o que quer para o país e até para o PS já se revelara de modo ostensivo na campanha eleitoral.

Usou quase sempre de um tom e de uma linguagem radical enquanto se passeava com um programa “moderado”. Tanto recusava vir a aprovar qualquer orçamento de um possível governo da coligação como exaltava a bondade e a necessidade dos consensos. Ora, prometia o paraíso na terra com o fim de todos os sacrifícios; ora, jurava ser o garante fiável de uma política prudente e responsável. Nuns dias, atirava à direita, causa de todos os males e mãe de todo o empobrecimento; noutros, malhava à esquerda, utópica e irresponsável, fonte de votos meramente inúteis. Nunca foi capaz de ter um foco, de articular um pensamento coerente, uma ideia e desígnio principais. Perdia-se numa multiplicidade de propósitos, atirando para todos os alvos, desenhando um perfil de quem procura o voto pelo voto, sem nenhum outro desiderato, sem qualquer outra aspiração. E quem diz voto pelo voto, diz naturalmente o poder pelo poder.

2. É esta matriz de ambiguidade e de ambição que enforma a fase seguinte, o percurso efectuado da noite eleitoral até aqui. Nessa noite, a maneira como reconheceu a responsabilidade de formar governo à coligação e a força com que rejeitou a ideia de uma “maioria negativa” deixaram no ar a impressão de que nada sucederia à esquerda. Não falta quem agora queira examinar à lupa as frases que então proferiu e aí descortinar que, em “certos pressupostos”, teria afinal admitido uma “maioria esquerda-extrema esquerda” (desde que esta não fosse uma aliança negativa mas positiva). A verdade é que isso não resulta do sentido geral das suas declarações, nem poderia resultar, pelo menos para um qualquer destinatário comum (o normal telespectador). Ficou ali preclaro que Costa e o PS não equacionavam esta solução como plausível. Bastou, porém, alguma agitação nas cadeiras do PS, o início da contestação e os pedidos de Congresso e de nova eleição do secretário-geral, para que, na senda da síndrome oscilante da campanha, António Costa passasse a pensar na dita solução de coligação com a esquerda radical, eurocéptica ou anti-União Económica e Monetária. São de estranhar os elogios rasgados à reunião com o PCP que, mesmo que fossem reais, não parecem curiais numa fase tão precoce de uma negociação que é tripartida e que se antevê complexa. E mais bizarra ainda a exultação com a reunião com os Verdes, sabendo que estes verdadeiramente não contam e não passam, de resto, de um satélite artificial do PCP. É evidente que com esta mensagem – agora clara e não nebulosa – se quer passar um recado para a coligação ou então preparar o terreno para os incrédulos (que o mesmo é dizer, preparar o país).

3. Mais preocupante – e séria – foi a estratégia montada para a reunião com a coligação. A ideia de não apresentar nenhuma proposta é deveras reveladora. Seria de esperar que o PS, para viabilizar uma solução governativa, preservando a dissonância e diferença inerentes à liderança da oposição, levasse um caderno de encargos. Um caderno em que alinhasse as suas exigências e em que traçasse as suas linhas vermelhas. E naturalmente que cruzasse esse caderno com as vistas da coligação. Ao abster-se, pura e simplesmente, de adiantar qualquer proposta ou exigência, o PS quis, conscientemente, criar um vazio negocial. E depois, em tom tonitruante, fazer contrastar esse vazio com a alta produtividade das reuniões com os comunistas e seus apêndices. É deveras intrigante que o PS tenha escolhido esta abordagem, pois seria de esperar que, sem prejuízo do seu papel de oposição, pudesse exibir como vitórias ou troféus as concessões da coligação. Podendo sempre dizer que, apesar de estar contra a respectiva política, tinha conseguido atenuá-la, remediá-la, melhorá-la. Mas não. Costa preferiu a total omissão, a abstenção de qualquer diligência, entregando à coligação a tarefa caricata de ter de escolher as fatias do programa do PS com as quais pode transigir. Uma metodologia esdrúxula e arrevesada que denuncia que Costa pode ter intenções bem distantes de um entendimento para a viabilização de um governo da coligação. Uma metodologia, de resto, coroada pelas declarações bombásticas de reunião inconclusiva e vazia.

4. Quanto mais Costa exalta as reuniões com a extrema-esquerda e as credibiliza com a organização de supostas equipas de negociação técnica, mais Costa fica prisioneiro do seu próprio discurso e das suas atitudes. Acabe como acabar, Costa quis deixar uma primeira impressão: é capaz de pactuar com a esquerda radical, não vê proveito em se ligar aos moderados do centro-direita e da direita. E ao fazê-lo, ainda que venha a entender-se com a coligação, já criou uma antecâmara de desconfiança e de indefinição. Por mais juras de amor que possa vir a fazer, já está cativo desse ambiente de hostilidade que ele próprio instilou. Ao cadenciar a sua trama como cadenciou e ao comunicar como comunicou, Costa gerou amarras das quais não vai facilmente libertar-se. E a pergunta que ecoa é: porque se amarrou como amarrou?

E a resposta, temida e temerária ao mesmo tempo, parece ser só uma e uma só: está cativo e refém da sua própria sobrevivência política. Depois de uma derrota contundente nas legislativas, pode seguir-se uma derrota inapelável nas presidenciais. E em tal cenário, o seu destino político como líder do PS (e quiçá como político) estará seriamente comprometido; isto para não escrever, irremediavelmente comprometido. Para sobreviver só lhe resta uma alternativa: tornar-se à força de toda e qualquer entorse, Primeiro-ministro. Se isso significa rasgar a tradição moral do PS, rompendo com a fronteira da liberdade e da democracia ocidental e com o consenso europeu, parece que pouco importa. Quando se está cativo, não se é livre.

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