Conversão na estrada dos Patacos

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Tal como existem os “trânsfugas fiscais”, também surgem às vezes, entre as criaturas de Deus, os “trânsfugas espirituais”, que por enquanto não deram origem a comissão de deputados ou inquérito parlamentar. Mas foi na colisão de dois mundos contrários — o do Dinheiro e o da Verdade — que nasceu um tal Carlos Abreu Amorim, apóstolo da Boa Nova Económica*:

— Fomos todos crédulos. Em termos políticos e não só. Houve um falhanço generalizado do sistema.**

Nem a Babilónia, nem Sodoma e Gomorra, com todos os seus vícios e perversidades, resistiriam inteiras às bolas de fogo que se seguiram. Jeremias, Isaías, Elias, guardai vossas inúteis profecias. Agora o que está a dar em termos de Apocalipse é: “Toda a minha vida adulta andei a ler Hayek, Friedman, a escola de Chicago, o liberalismo político clássico. (...) Neste momento, estou com mais do que suspeitas, com a convicção de que a lógica do liberalismo económico tem uma contradição insanável com a natureza humana. O agente económico deve ter regras fortes e devem existir instituições que forcem a sua aplicação. Caso contrário, a ganância, a prevaricação, o instinto de fuga às regras... Se nós olharmos para o que aconteceu em 2007 nos EUA e aqui, houve uma liberdade dadas aos agentes económicos, sobretudo financeiros, que pura e simplesmente eles não mereciam”. Mas veio a alvorada de um novo messianismo da fé e do coração: “É exactamente essa constatação que me leva a dizer que já não sou liberal. E olhe que me custa dizer isto. Até estou comovido.”

O Céu e a Terra proclamam a vossa Má Memória, Carlos. Quem crê em vós ou será salvo ou está parvo. Que aconteceu ao profeta do credo “Creio em um só Mercado todo poderoso, gerado não criado, criador do Céu e da Terra e de Wall Street e das coisas visíveis e das invisíveis e ainda das que agora não me lembro de ter assinado”?

Foi uma revolução inexplicável à luz da ciência. Carlos, histriónico apoiante do Governo, deputado e vice-presidente na bancada da maioria, coordenador dos deputados do PSD na comissão de inquérito do Grupo Espírito Santo, Dezembro de 2014. Também no século I, o temível Saulo, futuro apóstolo Paulo e pai da Igreja, era cidadão romano e responsável judeu que perseguia, prendia e matava os da nova seita dos nazarenos (isto foi muito mal comparado, é verdade, mas até estamos comovidos): “Persegui todos os que seguiam o Caminho da Regulação Económica e da Autoridade do Estado, fisguei homens e mulheres e inscrevi-os na listinha negra dos que deviam ir malhar com as trombas na Sibéria, para aprenderem.” Era o que Carlos, que na altura se chamava Sarlos, ou Sarnas, e entre alunos universitários “o Baleia”, como na história de Jonas, ia fazer num dia célebre: punir a seita socialista e comunista. Inesperadamente, o sol brilhou ao meio-dia na estrada de Damasco e, duas horas depois, por causa dos fusos horários, no Norte de Portugal.

Carlos conta como se converteu.

“Mas quando ia de viagem, já perto de Vila Nova de Gaia, quase ao meio-dia, vi de repente uma luz fortíssima que vinha do céu e me envolveu. Caí no chão e ouvi então uma voz que me dizia: ‘Carlos, Carlos! Porque me persegues?’ Eu então perguntei: ‘Quem és tu, Senhor, Jesus de Nazaré?’ E a voz respondeu-me: ‘Disparate, sou ex-administrador do BES. Não fiz nada de irregular, que me lembre foi tudo culpa dos outros, acho eu.’ Os homens que viajavam comigo viram bem essa luz, mas não ouviram a voz daquele que me falava. Mas também não havia microfones nem gravações como no BES e, se as houve, foram destruídas ou anuladas tipo processo Face Oculta e Apito Dourado. Mais tarde o cônsul Pinto da Costa visitou o pretor Sócrates nos calabouços de Ebora Liberitas Julia (“liberitas” mas não para todos...), isto logo a seguir ao Porto-Benfica (0-2), na segunda terrível derrota que sofri na mesma semana. Eu na estrada não via nada, parecia que levara com um verylight nas vistas. Três dias depois estava fino e, contra todas as ameaças e perseguições, comecei a pregar pelo mundo a Boa Nova do Controlo do Estado contra os sacerdotes do Liberalismo Pagão.”

As suas pregações criaram muitos inimigos. Carlos foi espancado em público com palavras por algumas “pouquíssimas centenas” (é como ele se refere aos professores em luta) dos que duvidaram da sua palavra. E também foi desqualificado por defensores do liberalismo clássico, para quem Carlos “não tem qualquer peso intelectual ou político”***, criando-se paradoxalmente, para esta ocasião, uma figura de peso que pode fazer escola: “Um Estado arbitrariamente grande tenderá a ser débil, tal como uma pessoa incautamente pesada tenderá a ser pouco saudável.”

Depois da apostasia inesperada, a vida anterior do liberal Carlos, Professor de Direito e bloguista, convertido aos 52 anos em apóstolo do Controlo, mostra a divina grandeza de certo tipo de miséria. Ele, que fora autor dessa espécie de “Epístola aos Magrebinos” num tweet de campeonato de futebol: “Magrebinos: curvem-se perante a glória do Grande Dragão!” Para Carlos Abreu, Alberto João Jardim “é muito injustiçado” e Miguel Relvas alvo de “brutal campanha”. Entretanto levou uma sova tão grande nas eleições para presidente da Câmara de Vila Nova de Gaia que pior só ser lançado nos esgotos de Roma, a Cloaca Máxima. Um dia vai escrever o segundo tomo da sua obra É Difícil Ser Liberal em Portugal. É preciso substituir “liberal” por “frontal”, “venal” ou “estatal”, pormenor amoriniano que falta decidir. Mas a História não esquecerá a máxima de Abreu Amorim que Milton Friedman e Karl Marx assinariam por baixo:

— Cavaco está bem quando está calado.

Só por isso conquistou este Natal um lugar no reino dos justos e do espírito, mesmo que nenhum Espírito Santo vá preso.

* não confundir com Carlos Abreu Amorim, o Velho, que se perdeu no Mar Vermelho com os exércitos do Faraó.

** abençoada entrevista a Paulo Pena e Cristina Ferreira, PÚBLICO de 21 Dezembro.

*** “Súmula Liberal”, de Gonçalo Almeida Ribeiro, Observador de 22 de Dezembro.     

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