Compromisso anti-histórico

Peço perdão, mas não dei por que a saída da NATO tivesse sido tema de campanha

Costumava-se dizer, na esquerda à esquerda do PS, que quando um partido queria fingir disponibilidade para negociar mas impossibilitar, na prática, a negociação, deveria optar pela seguinte artimanha: listar uma série de exigências absolutamente razoáveis e, no fim, acrescentar “...e a saída da NATO”.

Ontem assistimos a uma curiosa migração desta tática para a direita. O Presidente da República, após ter faltado às comemorações do dia da implantação da República, e sem ter ouvido todos os partidos que estarão representados na próxima Assembleia da República, comunicou ao país que pediu a Pedro Passos Coelho para formar o próximo governo com o apoio dos outros partidos parlamentares para garantir um “governo consistente, estável e duradouro”. E depois acrescentou... a NATO. Não o disse exatamente assim, mas foi o sentido da referência à necessidade de cumprir com os compromissos internacionais do país, incluindo os de defesa transatlânticos.

E essa referência, por sua vez, teve como intenção transparente excluir o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português do compromisso governativo. O CDS/PP pegou logo na deixa para proclamar que há uma maioria de mais de 80% no parlamento favorável aos ditos compromissos (o Presidente ainda mencionou a pertença à UE, ao euro, e a CPLP, talvez para o caso de algum partido não querer usar o acordo ortográfico).

Peço perdão, mas não dei por que a saída da NATO tivesse sido tema de campanha. A austeridade, por sua vez, foi. A continuidade das políticas do governo cessante também. E aí a linha de fratura era bem diferente: PSD e CDS propunham a continuação dessas políticas e PS, BE e a coligação PCP/PEV — com diferentes e importantes matizes — diagnosticavam a atual situação económica em termos de uma crise de procura e prescreviam políticas de investimento e emprego em lugar da austeridade. Foi com base nesse debate que os eleitores votaram, e isso ficou singularmente claro quando o PS declarou, pela voz de António Costa, que não aprovaria um orçamento de estado da coligação de direita.

Os atores políticos do centrão podem achar que isto é apenas a continuação da política convencional portuguesa segundo a qual existe um “arco da governação” e, fora dele, todos os partidos à esquerda do PS. Mas estão a brincar com algo muito mais grave do que isso: com o futuro do próprio regime. Se numa situação em que das eleições não resultou nenhuma maioria partidária e há na Assembleia da República uma maioria de esquerda — e, além disso, talvez o melhor resultado de sempre da esquerda à esquerda do PS —, se impõe a ideia de que há partidos fora das cogitações de governo, não há dúvidas de que o eleitorado se sentirá defraudado.

Num certo sentido, trata-se da mesma situação que vigorou na Itália de antes do “compromisso histórico” proposto por Berlinguer, e na qual o Partido Comunista Italiano nunca poderia participar no governo. Mas aqui é um compromisso anti-histórico que está em vigor: um compromisso que vai contra a corrente da história.

(Ficou prometida uma crónica sobre a candidatura do LIVRE/Tempo de Avançar e a minha participação nela. Já está escrita, mas ficou adiada para a próxima semana para dar prioridade à comunicação do PR.)

Historiador, dirigente do Livre

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