Primeiras leis, como se construiu o Portugal democrático

O edificio do Estado democrático português foi construido ao longo de anos e teve como estrutra central o processo de redação e aprovação da Constituição. O PÚBLICO lembra como se fizeram as leis da democracia através de dois dos seus principais construtores: Almeida Santos e Barbosa de Melo.

O 25 de Abril ficou para a história como a Revolução dos Cravos, em que as flores ocuparam os canos das espingardas dos militares revoltosos, assumindo-se como a simbologia festiva da revolução pacífica e democrática que então se iniciava na sociedade portuguesa. O principal domínio em que a construção da democracia teve lugar foi através da elaboração de todo um edifício jurídico-constitucional que estruturasse a nova sociedade livre que se propunha.

O 25 de Abril ficou para a história como a Revolução dos Cravos, em que as flores ocuparam os canos das espingardas dos militares revoltosos, assumindo-se como a simbologia festiva da revolução pacífica e democrática que então se iniciava na sociedade portuguesa. O principal domínio em que a construção da democracia teve lugar foi através da elaboração de todo um edifício jurídico-constitucional que estruturasse a nova sociedade livre que se propunha.

“O período antes da aprovação da Constituição é de turbulência, há a necessidade de estabilizar a sociedade e de reorganizar o Estado de forma democrática”, explica ao PÚBLICO o investigador João Paulo Dias, director executivo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que estudou a alteração das leis no período revolucionário e pós-revolucionário.

“A legislação anterior caiu com a revolução, não foi preciso revogá-la”, mas nestes momentos de ruptura “é preciso substituir leis, não se fica no vazio, as leis tiveram de ser substituídas e foram-no com uma rapidez incrível”, sublinha ao PÚBLICO António de Almeida Santos, um dos protagonistas centrais desta mudança, enquanto ministro da Coordenação Interterritorial dos I, II, III e IV governos provisórios, ministro da Comunicação Social do VI, ministro da Justiça do I Governo Constitucional, ministro-adjunto do primeiro-ministro, no II, ministro de Estado e dos Assuntos Parlamentares, com o Bloco Central, e Presidente da Assembleia da República.

João Paulo Dias salienta que “há um clima que se transmite nos debates na Assembleia Constituinte”, é ai patente “uma intensidade e uma complexidade”, as quais são responsáveis por que “a Constituição só estivesse pronta dois anos depois do 25 de Abril, a 2 de Abril de 1976”. Este “foi o tempo necessário para se tentar buscar a sustentação da transição de regime, sem grandes conflitos”, explica o investigador.

Barbosa de Melo, constituinte e deputado pelo PSD, que foi também Presidente da Assembleia da República, lembra que foi preciso “pensar o direito do Estado democrático” e considera que “a Constituinte foi isso, os vários juristas colocados perante uma coisa nova”.

Como protagonista maior da elaboração da Constituição, mas também tendo participado nos grupos de trabalho e de decisão sobre as opções jurídico-políticas da época, como a comissão que elaborou a lei eleitoral para a Assembleia Constituinte, Barbosa de Melo não hesita em garantir que, para os construtores do Portugal democrático, “a democracia estava ligada à democracia liberal”.

Este constitucionalista recorda que “o MFA parecia deixar apenas que se organizassem instituições políticas e que houvesse partidos” e sublinha: “Escolhemos o sistema proporcional pois sabíamos bem a nossa história política e assim assegurávamos representatividade.”

Sobre a sua própria participação no processo legislativo Barbosa de Melo garante: “O voto aos 18 anos foi a minha batalha ganha.” Um debate em que se empenhou quanto pode: “Perante as críticas feitas pelos que defendiam que o voto permanecesse nos 21 anos, respondi que, se aos 18 anos os nossos jovens tinham idade para morrer em África, tinham também idade para votar.”

Mas considera que foi Salgado Zenha quem produziu “a maior parte da legislação quando ocupou o Ministério da Justiça”. Também Almeida Santos frisa: “Logo com o primeiro ministro da Justiça, Salgado Zenha, houve uma lei de reforma importante e pacificadora da sociedade: a revisão da Concordata. Depois, claro, há que salientar a Constituição. A grande Lei foi a Constituição.”

Defendendo as opções e soluções tomadas há 40 anos e que estão na base do sistema político português, Barbosa de Melo sustenta: “Queríamos dar garantias da mais ampla representação. As perversões manifestadas hoje no sistema político não têm a ver com o sistema eleitoral e político, têm a ver com visões da sociedade portuguesa.”

E defendendo os que consigo construíram a democracia portuguesa, Barbosa de Melo afirma: “Em 1974, 1975 e 1976 tomámos opções com a cultura política que tínhamos. A solução é muito mais comezinha do que se pensa. Hoje há quem se queira alcandorar no corno da Lua. Mas foi simples desenvolver o sistema.”

Uma simplicidade que garantiu o sucesso, de acordo com o investigador João Paulo Dias. Refere o director executivo do CES de Coimbra que foi preciso “democratizar e fazer o edifício legal democrático, o processo de descolonização, o regresso dos portugueses de África e a constituição do Estado Social”. Isto “tudo através de um processo legislativo de construção de um Estado moderno”. E insiste: “Foi um processo de grande sucesso.”

Um processo reformista que “passou por três pilares: o sistema político, executivo e legislativo”, explica João Paulo Dias, onde foi introduzido “um novo regime de check and balance”, ou seja, um equilíbrio de poderes e contrapoderes que garantem o funcionamento democrático do Estado.

Neste processo, “o poder legislativo ganha preponderância e há uma valorização da Assembleia da República”. Há ainda “a ascensão do terceiro poder de acordo com Montesquieu, o judicial, que no Estado Novo era um prolongamento do poder executivo”, salienta o investigador da Universidade de Coimbra.

Como pilar central do processo de construção do corpo legal que dá sustentação ao Estado democrático, Dias salienta a própria “Constituição como elemento estruturante de base da sociedade portuguesa”. Considera mesmo que “é difícil conseguir tanto consenso como o que foi obtido então”.

Mas algo ficou por fazer, diz, do ponto de vista da construção da democracia: “Uma lei que criasse uma comissão de verdade e de memória, que pudesse ajudar a sociedade portuguesa a encontrar-se.” E concretiza: “Temos visto noutros países que conseguem instituir estas comissões, na África do Sul, no Brasil, no Chile. Para recuperar a memória do passado e diminuir a tensão no presente. Ao afastarmos a memória, acabamos por não discutir as questões. Iria desenvolver uma cultura de diálogo e transparência.”

E João Paulo Dias destaca uma figura de legislador na democratização portuguesa, sobretudo no que se refere à transformação do poder judicial: “Almeida Santos é uma figura central que se destaca. Como ministro da Justiça, faz mudanças centrais, reformula a Justiça.”

O investigador pormenoriza que “primeiro, Almeida Santos faz a Lei Orgânica dos Tribunais em 1977, uma semana antes de uma outra lei que confere independência à Justiça — o Estatuto dos Magistrados Judiciais”.
Estas leis são aprovadas “um ano e meio depois da Constituição” e “estabilizam os tribunais”. É por isso que o académico afirma que “Almeida Santos teve um papel importantíssimo”, mas salienta que teve um “braço direito: o secretário de Estado José Santos Pais, que lhe sucedeu como ministro da Justiça”, além do seu “assessor à época, Cunha Rodrigues, que foi influentíssimo”.

O investigador da Universidade de Coimbra sublinha ainda que a reforma da Justiça termina com mais duas leis. “Em 1978, já com Santos Pais como ministro no II Governo Constitucional, é publicada a lei orgânica do Ministério Público, que o desafecta do Ministério da Justiça e que lhe confere autonomia”, uma lei “influenciada por Cunha Rodrigues”. O processo termina, “em 1979, com a criação do Centro de Estudos Judiciários, com o ministro Pedro de Sousa Macedo, próximo do PSD”.

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