Claustrofobias, dez anos depois: o acantonamento de Assis

No PS, como em toda agremiação sectária, há um mal maior do que o inimigo: a ousadia da divergência. Eis uma ética e um método, prosseguido zelosa e sistematicamente, nos infaustos tempos do socratismo e da sua propaganda.

1. É absolutamente inaceitável, num partido como o PS, tratar a assunção de uma posição divergente – ainda por cima, apresentada de um modo racional, equilibrado, sereno e respeitador – da forma que altos dirigentes e membros do Governo trataram. O modo como Pedro Nuno Santos vituperou e repeliu a posição de Francisco Assis é chocante. Faz lembrar os tempos em que se ufanava de se “marimbar” para a dívida e os alemães. Os termos e o tom não são a manifestação, natural e legítima, mesmo que veemente, de uma discordância ou distanciamento: representam uma tentativa de “acantonamento”, amarfanhamento e até amesquinhamento de uma personalidade política e do seu pensamento. Basta atentar em que Santos e dirigentes destacados do PS não se limitam a refutar uma posição; perpetram, ao invés, um ataque pessoal, lançando a atoarda de que está em causa a simples avidez e sofreguidão de protagonismo mediático. Ao reduzir a expressão da análise e opinião política de Francisco Assis a uma vontade de cintilar no espaço mediático, converte-se uma divergência política numa desvalorização ou diminuição da pessoa. Tudo isto, enquanto António Costa, do alto da sua poltrona de Davos, tão “ergonomicamente” capitalista, não comenta nem defende a pluralidade de opinião dentro do seu partido – o tal da liberdade e da ética republicana. Quiçá porque em Davos, e para pasmo geral, oráculos vários lhe terão confessado maravilhas sobre a situação do país.

Depois de todas as posições que tomou, fora e dentro dos órgãos próprios do PS, depois de todos os imprescindíveis escritos que semanalmente  deixa no PÚBLICO, alguém pode estranhar a posição de Francisco Assis? E, olhando para o seu percurso político, para a sua estatura intelectual, para a sua conduta moral, para a sobriedade e simplicidade do seu modo de ser e estar, alguém acredita que se trata de um voraz recolector de publicidade mediática? Faz isso algum sentido? Tem isso algum cabimento? Não é isso uma forma enviesada e até chocarreira de tentar esconjurar um pensador não alinhado e evitar que alguém sufrague ou tome a sério a sua análise? A análise bateu fundo, não há dúvida.    

2. Na quinta-feira, em programa televisivo, chamei a atenção para este comportamento político de cariz autoritário e de vezo segregador. E é verdade que Francisco Assis já veio, em declarações ao Expresso, fazer a sua legítima defesa. E não é menos verdade que Manuel Alegre, sempre atento aos valores da pluralidade e da liberdade de pensamento, veio pôr as coisas no lugar. Mas um comportamento desta gravidade não pode passar em claro nem pode passar como uma pequena onda da espuma dos dias. Com efeito, os tiques autoritários deste Governo para com a oposição e para com as vozes dissonantes no interior do PS são ostensivos e parecem estar em franco recrudescimento. Curiosamente, o Governo só é complacente, compreensivo – até meigo ou “meiguinho” – com tudo o que diz e faz a extrema-esquerda. O Bloco e o PCP podem criticar toda e qualquer medida que não lhes agrade, podem inviabilizar a tomada de medidas que o Governo considera essenciais, podem fazer toda a sorte e género de declarações hostis ou de simples distanciamento: são sempre brindados, quando já não há outro, com o rasgado e esfarrapado elogio da coerência. Discordam, boicotam, bloqueiam, inviabilizam, criticam, dificultam, mas “fazem bem”, fazem bem porque estão protegidos pelo manto diáfano da pretensa “coerência” e da salutar pluralidade. “Esta é uma maioria diferente” – clamam e proclamam. Esta é uma maioria que discorda de si mesma e que, quando falha, exige que os outros supram as suas discordâncias. Bloco e PCP estão, pois, autorizados a fazer aquilo que, pelos vistos, já nem os militantes nem os dirigentes do PS podem fazer: discordar, dissentir, criticar!

Se algum dos partidos da oposição ousa levantar a voz e actuar em conformidade leva logo com o epíteto de antipatriótico, de destruidor dos sumos valores da concertação social, de fanático defensor do “quanto pior, melhor”. Mas  há obviamente um pecado mais hediondo do que fazer oposição externa: divergir, dissentir ou discordar dentro do PS. Aí, como em toda agremiação sectária, há um mal maior do que o inimigo: a ousadia da divergência.  Eis uma ética e um método, prosseguido zelosa e sistematicamente, nos infaustos tempos do socratismo e da sua propaganda. Tempos em que toda a voz dissonante era abafada, em que toda a discordância era diabolizada, em que a opinião publicada era laboriosamente seduzida. Dez anos passaram. Talvez ainda não haja claustrofobia, mas já se perfilam “claustrofobias”.

3. Note-se que este PS e este Governo que, pela voz belicosa de Nuno Santos e pela farpa afiada de dirigentes vários, despreza a livre discussão interna, é o mesmo que a todo o momento invoca as tomadas de posição de Pacheco Pereira, de Marques Mendes ou de Silva Peneda para tentar fazer valer os seus pontos. Ou seja, convive muito bem com a pluralidade e a dissensão no PSD, mas não tolera nem suporta uma única voz divergente no interior do PS. Aliás, merece aqui registo o modo democraticamente impecável e irrepreensível como a liderança do PSD lida com as críticas, por vezes acerbas e radicais, de vários dos seus destacados militantes. Basta pensar na crítica permanente e estrutural de Pacheco Pereira, nos comentários semanais de Marques Mendes ou na recente carta dura e hostil de Silva Peneda. A resposta da liderança do PSD não podia ser mais fleumática e mais respeitadora da diversidade. Mesmo as reacções de altos dirigentes visam sempre o conteúdo e, salvo algum episódio que agora me escape, nunca personalizam a discordância. Cuidado, muito cuidado: com tanta paz e anestesia político-social, pode volver o tempo em que, tal como a nudez, toda a ousadia será castigada. 

 

SIM e SIM

SIM. Antonio Tajani. De longa carreira europeia, legislativa e executiva, conhece bem os 28 países e os seus mais relevantes políticos. Junta à visibilidade, um invulgar talento conciliador. Os 60 anos do Tratado de Roma mereciam bem um italiano.

SIM. Miguel Guimarães. O novo bastonário da Ordem dos Médicos é um médico de calibre, profundo conhecedor dos problemas da saúde, do SNS e da classe. Um bom augúrio para o sector em Portugal.

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