Chefe de missão do FMI pediu revisão constitucional para renovar memorando

"Se não conseguem trabalhar com esta [Constituição], têm de arranjar outra", disse Subir Lall ao Governo em 2014. Revelação é feita no livro "Segredos de Estado" que é lançado esta semana.

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A troika durante a sétima avaliação Nuno Ferreira Santos

O último chefe de missão do Fundo Monetário Internacional para Portugal, Subir Lall, advertiu em Abril de 2014 que a negociação de qualquer novo programa de ajustamento implicaria uma revisão constitucional, quando se falava de uma extensão do memorando.

Esta é uma das revelações do livro "Segredos de Estado", assinado por Luís Reis Pires, jornalista do Diário Económico, em coautoria com Nuno Martins, do jornal online Observador, nas bancas desde quarta-feira e que será apresentado no próximo sábado.

"Foi de tal modo difícil para a troika lidar com o Tribunal Constitucional (TC) e com os argumentos do Governo para não levar avante algumas ideias que, na hora de ir embora, Subir Lall avisou que, se algo corresse mal e Portugal voltasse a precisar do apoio do FMI, todo e qualquer novo programa seria dependente de uma revisão constitucional": "Se não conseguem trabalhar com esta [Constituição], têm de arranjar outra", afirmou o economista-chefe.

Ao longo de mais de duzentas páginas, os dois autores relatam os "bastidores" das negociações entre o Governo português e os técnicos do FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu ao longo de três anos e doze avaliações à execução do memorando de entendimento, com reuniões em tom agressivo, "puxões de orelhas" do Presidente da República e uma crise política sem paralelo, em Julho de 2013.

Com base em mais de sessenta entrevistas off the record, os dois autores convergem que houve uma "gestão muito mais política" da austeridade desde que Paulo Portas passou a liderar as negociações com a troika com Maria Luís Albuquerque, após a sua demissão "irrevogável", em Julho de 2013.

No livro, fica patente a difícil relação de Portas com Vítor Gaspar, que como ministro das Finanças pediu a Passos Coelho mais autoridade no seio do Governo, e também com vários técnicos da troika. A relação do vice-primeiro-ministro era particularmente difícil com o último chefe de missão do FMI, Subir Lall, que acusou o português de não ter "respeito por ninguém".

A 15 de Dezembro de 2013, o livro relata que Paulo Portas invocou "um compromisso urgente" para se ausentar de uma reunião que tinha convocado com os três chefes de missão no Palácio das Laranjeiras para ir às Caldas da Rainha inaugurar um relógio de contagem decrescente para a saída da troika, no encerramento do Congresso da Juventude Popular.

Sem terem sido informados, os três representantes internacionais assistiram pela televisão, "perplexos, a olhar uns para os outros".

No livro é ainda citada uma conversa em que Portas congratula o seu então secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Miguel Morais Leitão, por ter ocultado à troika um "buraco orçamental em torno de uma dedução de IVA", no âmbito da sétima avaliação, em Março de 2013.

"Sabe que eles depois, na oitava avaliação, vão apanhar tudo. Nessa altura já vai haver dados", avisou Morais Leitão. De acordo com o livro, Paulo Portas respondeu: "Ó Luís, a oitava avaliação é daqui a três meses, eu quero é fechar a sétima, pelo amor de Deus".

Álvaro Santos Pereira, antigo ministro da Economia, é apontado como um dos governantes que, na fase final do seu mandato, entrou em "rota de colisão" com a troika devido à tentativa de reduzir mais os salários no privado. "Não somos ratos de laboratório! Não vamos aceitar isso! Façam as reuniões que quiserem, a resposta é não a tudo", afirmou Santos Pereira, poucas semanas antes de deixar o Governo.

Já numa reunião da concertação social com a troika, em 2013, o secretário-geral da CGTP, Arménio Carlos, chamou "criminoso de guerra" ao então chefe de missão do FMI, Abebe Selassie e "violador de direitos humanos" a John Berrigan, da Comissão Europeia, por quererem reduzir as indemnizações nos despedimentos sem justa causa.

A obra revela ainda que o Presidente da República, Cavaco Silva, teve um papel fundamental na conclusão da sétima avaliação, que se arrastou por vários meses e "foi a mais longa e dura do programa", ao pressionar expressamente Passos e Portas - "Têm de fechar isto" - a entenderem-se sobre o pacote de medidas, que incluía a chamada "TSU dos pensionistas".

Já em 2014, depois de várias "guerras" durante a execução do memorando, Subir Lall pediu ao Governo uma aula sobre o funcionamento do TC, que foi dada pelo ministro Miguel Poiares Maduro e pelos secretários de Estado Carlos Moedas e Morais Leitão.

"Segredos de Estado" é publicado pela editora Matéria-Prima e apresentado no próximo sábado numa livraria na baixa de Lisboa pelo jornalista João Miguel Tavares e o humorista Ricardo Araújo Pereira.

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