Cavaco, um “privilegiado”, saiu de Belém “satisfeito e de consciência bem tranquila”

Ex-Presidente foi homenageado num almoço organizado por Leonor Beleza em que estiveram antigos ministros e secretários de Estado, muitos sociais-democratas e gente da banca, e recebeu a visita fugaz de Marcelo.

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Cavaco Silva afirmou estar "descontraído" com o actual cenário político em Portugal ENRIC VIVES RUBIO

Diz que foi um “privilegiado, um homem de sorte” na sua “longa vida política”, mantém um sentimento de “gratidão” em relação a quem o elegeu e aos que o acompanharam em funções públicas, e garante que saiu de Belém “satisfeito” consigo próprio e “de consciência bem tranquila”. Aníbal Cavaco Silva, homenageado este sábado por amigos num almoço que reuniu cerca de 90 pessoas, considera que foi Presidente da República no “tempo certo”, embora “bem difícil e complexo, e de profundas crises na Europa e em Portugal”.

O ex-chefe de Estado discursou depois de uma intervenção elogiosa de Leonor Beleza, a mentora deste “almoço da amizade”, como lhe chamou a actual presidente da Fundação Champalimaud, que prometeu que a homenagem no plano político também lhe será feita no futuro. Beleza afirmou que Cavaco é uma “pessoa excepcional que vê antes e arrisca tudo”, com quem o país teve “momentos raros de avanço e de mudança”. “Portugal é hoje muito, nas coisas de que nos orgulhamos, o resultado de iniciativas e projectos seus, dos governos que concebeu e liderou”, defendeu a sua antiga ministra da Saúde.

Leonor Beleza salientou a “tranquilidade actual” de Cavaco Silva, decorrente da “profunda convicção do dever cumprido, de ter dado tudo o que podia, de estar seguro que fez o melhor que era possível, mesmo se não contou com a compreensão de todos”. O ex-Presidente da República ouviu os 14 minutos de discurso de rosto fechado, sentado de costas para Beleza, sem sorrisos nem mesmo quando esta disse algumas piadas – como o facto de ter feito anos há pouco tempo e de não gostar de o celebrar.

Mas foi precisamente na ideia da tranquilidade que Aníbal Cavaco Silva pegou algumas vezes quando chegou ao microfone para falar de improviso e onde só no final a voz lhe saiu embargada ao agradecer à mulher, Maria Cavaco Silva, e à família. No resto do tempo, fez um resumo do seu percurso por funções de Estado – de ministro das Finanças e do Plano de Sá Carneiro, passando pela década como primeiro-ministro e os últimos dez anos como chefe de Estado. Só falou das vitórias, não das derrotas.

"Capacidade de ter razão antes do tempo"

“Se eu tive uma looonga carreira política”, disse Cavaco, enfatizando a palavra, “isso deve-se a muitos que estão aqui e também a muitos que não estão aqui” – e que estiveram ao seu lado “sem pedir absolutamente nada em troca”, começou por dizer.

“Na vida política fui um privilegiado, um homem de sorte”, garantiu, por ter entrado nela pela mão de Sá Carneiro, com quem aprendeu “muito” sobre “sentido de Estado, clarividência política, coragem, capacidade de ter razão antes do tempo. “Se Sá Carneiro não me tivesse ido buscar à universidade e ao Banco de Portugal, não teria tido uma vida política; teria tido uma carreira académica.” Sobre o seu tempo como primeiro-ministro, desfiou as inúmeras mudanças geopolíticas e históricas na Europa e no mundo durante a década em que foi primeiro-ministro e de políticas icónicas dos seus governos.

Acerca do tempo em Belém, entre 2006 e 2016, descreve-o como “um tempo bem difícil, complexo e de profundas crises na Europa e em Portugal”, para logo a seguir perguntar: “Em que outro tempo teria sido mais útil para o meu país a minha experiência como primeiro-ministro? O meu conhecimento de economia e finanças, o meu conhecimento das instituições europeias? Eu não consigo ver outro. Portanto, eu considero que foi o tempo certo para eu ser Presidente da República”, defendeu, sem rodeios.

Mas colocou muitos créditos em mãos alheias para dizer que se completou dois mandatos e saiu “satisfeito” consigo próprio e “de consciência bem tranquila”, isso também se deveu aos assessores e consultores. E realçou que “há muita coisa que não se sabe” sobre a forma como exerceu funções em Belém porque decidiu “manter muita coisa reservada na convicção de que era a melhor forma de defender o interesse nacional” – uma forma de se justificar perante os críticos dos longos silêncios do Presidente em relação a muitas matérias, por contraponto à atitude expansiva do actual detentor do cargo. 

Para logo a seguir voltar a colocar um ponto no assunto: “Este não é o tempo, como é óbvio, de fazer revelações. É o tempo para agradecer aos que estiveram ao meu lado nas mais variadas situações e me ajudaram a percorrer este caminho político.”

Recuando aos dez anos em São Bento, Cavaco lembrou ter sido o tempo da adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia e de estadistas europeus como Helmut Kohl, Mitterrand, Delors, Thatcher, González; do desmoronamento dos regimes comunistas a Leste, da reunificação da Alemanha, do fim do apartheid na África do Sul; do aprofundamento da integração europeia, da criação do mercado interno e da moeda única, de Maastricht.

E não deixou de falar de políticas consideradas marcantes dos seus governos. “Foi o tempo”, disse, da revisão da Constituição de 1989, do fim da estatização da comunicação social e do monopólio televisivo da RTP, da redução do peso do Estado na economia, da alteração da legislação laboral, e da legislação agrária “pondo fim à ocupação de terras, a reforma do sistema educativo que aumentou a escolaridade obrigatória de seis para nove anos, a reforma das Forças Armadas e do sistema fiscal, a aprovação da lei de bases da Saúde que permitiu a abertura do sector à iniciativa particular”.

Uma "boa coincidência"

Convidado por Leonor Beleza, o actual Presidente da República apenas passou 15 minutos pelos jardins das cavalariças do Hotel Pestana Palace para cumprimentar o antecessor e os outros convivas – porque tinha um casamento. Ambos estiveram poucos minutos à conversa mesmo na frente das câmaras de televisão, abraçaram-se e despediram-se. Aníbal Cavaco Silva não falou aos jornalistas, mas Marcelo Rebelo de Sousa considerou uma “boa coincidência” que dois antigos primeiros-ministros e Presidentes da República sejam homenageados no mesmo dia. Ao fim da tarde, António Costa assinala os 40 anos da investidura do primeiro Governo constitucional com uma cerimónia, em que se destaca Mário Soares, na sua residência oficial em São Bento – e onde Marcelo estará presença.

Entre os cerca de 90 convivas que se juntaram para o almoço estavam, além dos organizadores, amigos, antigos ministros e secretários de Estado dos seus governos e colaboradores de Cavaco Silva durante a Presidência, como foi o caso de Ramalho Eanes, João Lobo Antunes (mandatário e conselheiro de Estado), Nunes Liberato (chefe da Casa Civil), Teresa Patrício Gouveia, Faria de Oliveira, Maria João Avillez, Abdul Vakil, Fernando Ulrich, Artur Santos Silva, Vítor Bento, Álvaro Barreto, Miguel Beleza, Luís Marques Mendes, Eunice Muñoz, Norberto Rosa, Carlos Moedas, Teresa Morais, Luís Marques Guedes, Paulo Teixeira Pinto, Jaime Nogueira Pinto.

Aos jornalistas, também Leonor Beleza usara a expressão “pura coincidência” para o facto de as duas homenagens se realizarem no mesmo dia e disse que o seu grupo organizador, onde se incluem Luís Palha, Alexandre Relvas, Vasco Rocha Vieira, Luís Sousa Macedo e Manuela Ferreira Leite – a única que não pôde comparecer – entendeu que esta seria a melhor data por ser perto do aniversário de Cavaco e dos 29 anos da primeira maioria absoluta (dia 19) do PSD – “um feito seu que perturbou definitivamente a percepção que tínhamos do funcionamento do nosso sistema politico – a primeira maioria absoluta de um só partido”, exaltou a antiga ministra durante o discurso no início do almoço.

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