Cavaco Silva promulgou Estatuto dos Açores mas denuncia abertura de "precedente muito grave"

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O Presidente da República disse ter feito tudo para defender os superiores interesses do Estado Pedro Cunha

O Presidente da República anunciou esta noite numa declaração ao país que promulgou hoje o Estatuto Político-Administrativo dos Açores, documento que tinha vetado, apesar de considerar que este abre um “precedente muito grave”, “abala o equilíbrio de poderes e afecta o normal funcionamento das instituições da República”. Para Cavaco Silva a qualidade da democracia ficou irremediavelmente afectada, apesar de tudo ter tentado para que os “interesses partidários” não se sobrepusessem aos nacionais.

Cavaco Silva lamentou que não tenham sido “acolhidas pela maioria dos deputados as duas objecções” por si suscitadas sobre os artigos 114º e 140º e questionou se "será leal ou não que um órgão de soberania imponha ao Presidente da República uma redução dos poderes que a Constituição lhe confere".

O chefe de Estado fez também questão de ressalvar que este “não é um problema com o actual Presidente da República” nem uma questão relacionada com a autonomia regional: “É o superior interesse do Estado português” que está em causa.

Para Cavaco Silva “a situação agora criada não mais poderá ser corrigida” e “introduz um precedente muito grave”. O Presidente recusa-se a aceitar que uma lei ordinária restrinja os seus poderes, previstos numa lei superior, a Constituição da República Portuguesa, e alerta para o facto de passar a ser mais difícil dissolver a Assembleia Regional do que a Assembleia da República – apesar de ressalvar que tal não aconteceu em mais de 30 anos e que não é expectável que aconteça. Cavaco Silva colocou-se ao lado de muitos juristas, considerando “absurdo” que tenha de ouvir os diferentes partidos, o Governo regional e a própria Assembleia dos Açores no caso referido.

Na sua declaração ao país, o chefe de Estado aproveitou ainda para dizer que o precedente aberto de limitar os seus poderes com uma lei ordinária “abala o equilíbrio de poderes e afecta o normal funcionamento das instituições da República”, que ficam sujeitas à “contingência da legislação ordinária”. E acrescentou: “A qualidade da nossa democracia sofreu um sério revés”.

Para Cavaco é “muito importante que os portugueses compreendam o que está em causa neste processo” que diz ter abalado a lealdade entre os diferentes órgãos. “A situação agora criada não mais poderá ser corrigida pelos deputados. Uma outra Assembleia da República que seja chamada, no futuro, a uma nova revisão do Estatuto vai estar impedida de corrigir o que agora se fez. Isto porque foi acrescentada ao Estatuto uma disposição que proíbe a Assembleia da República de alterar as normas que não tenham sido objecto de proposta feita pelo parlamento dos Açores”, explicou o Presidente.

Poderes da Assembleia da República "hipotecados"

Assim, “a actual Assembleia da República aprovou uma disposição segundo a qual os deputados do parlamento nacional, que venham a ser eleitos no futuro, só poderão alterar aquelas normas que os deputados regionais pretendam que sejam alteradas. Os poderes dos deputados da Assembleia da República nesta matéria foram hipotecados para sempre”.

Apesar das suas objecções, Cavaco Silva explicou que a não promulgação do diploma nunca esteve em causa – “assumi o compromisso de cumprir a Constituição e cumpro aquilo que digo”. Ainda assim, o chefe de Estado fez questão de sublinhar que nunca ninguém poderá dizer que não fez tudo o que estava ao seu alcance para impedir que a democracia fosse colocada em risco com este precedente. “Nunca ninguém poderá dizer que não fiz tudo o que estava ao meu alcance para impedir que interesses partidários de ocasião se sobrepusessem aos superiores interesses nacionais”, acrescentou. E deixou um alerta: “A atenção dos agentes políticos devia estar concentrada nos graves problemas que afectam a vida das pessoas”.

A polémica sobre o Estatuto dos Açores só não morre aqui porque deixa marcas profundas na relação entre o Presidente da República e o primeiro-ministro, José Sócrates. Esta divergência de posições rompeu com a chamada "cooperação estratégica" entre Belém e São Bento e disso não têm dúvidas nem um nem outro lado, embora ninguém o assuma. O Presidente não adiantou, no entanto, se vai pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização sucessiva do diploma, um processo que só pode ser desencadeado quando o Estatuto entrar em vigor e que é moroso (dois a três anos). O PSD já fez saber que vai recorrer a esta possibilidade.

A revisão do Estatuto dos Açores, em que Cavaco Silva tem dúvidas e vetou em Outubro, foi confirmada a 19 de Dezembro pelo PS, PCP, CDS-PP, BE e Verdes e com a abstenção do PSD, registando-se numerosas declarações de voto nas duas maiores bancadas. Na primeira votação, em Junho, a revisão do Estatuto dos Açores foi aprovada por unanimidade, seguindo-se um veto por inconstitucionalidades. Na segunda votação, corrigidas as oito inconstitucionalidades apontadas pelo Tribunal Constitucional, o diploma voltou a ser aprovado por unanimidade, mas foi depois vetado pelo Presidente. Na terceira votação, o Estatuto Político-Administrativo dos Açores foi confirmado na Assembleia da República sem unanimidade mas com maioria de dois terços, com os votos de todos as bancadas, à excepção do PSD, que se absteve.

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