Cavaco e a filosofia da linguagem

Cavaco Silva, a 21 de Julho de 2014, na Coreia do Sul: “O Banco de Portugal tem sido peremptório, categórico, a afirmar que os portugueses podem confiar no Banco Espírito Santo, dado que as folgas de capital são mais do que suficientes para cobrir a exposição que o banco tem à parte não financeira, mesmo na situação mais adversa. E eu, de acordo com a informação que tenho do próprio Banco de Portugal, considero que a actuação do banco e do governador tem sido muito, muito correcta.”

Cavaco Silva, a 30 de Janeiro de 2015: “Eu já reparei que alguns dos senhores, e também alguns políticos, disseram e escreveram que o Presidente da República fez alguma declaração sobre o BES. É mentira. É mentira! Alguns invocam uma declaração que eu fiz na Coreia. Na Coreia, eu fiz três afirmações sobre o Banco de Portugal. E mais nada.”

Ora bem: perante estas duas declarações do senhor Presidente, há quem apressadamente aponte o dedo ao seu carácter esquivo e o acuse de se estar a contradizer em relação ao BES, sobretudo após Ricardo Salgado nos ter informado que se reuniu duas vezes em 2014 com Cavaco Silva, a última das quais a 6 de Maio, escassas três semanas antes do início do famoso aumento de capital do BES. Pessoas mal-intencionadas olham para isto e desconfiam que Cavaco sabe mais do que diz e se está outra vez a fazer passar por sonso.
Eu, pelo contrário, agradeço ao Presidente da República esta magnífica oportunidade para pôr em prática as centenas de horas de filosofia da linguagem que tive de digerir ao longo da universidade, e que nunca me tinham servido para nada. Até agora. Porque, de facto, há aqui um duplo problema de compreensão das palavras do senhor Presidente, certamente causado pelo pouco à-vontade da população portuguesa com a obra de Saussure, Wittgenstein, Austin ou Ricoeur, que há muito nos alerta para os escolhos na relação entre linguagem e realidade.

O primeiro problema do conflito de interpretações Cavaco/povo português é lógico. Efectivamente, da conjugação das frases “O Banco de Portugal disse-me que o BES está porreiro” e “O Banco de Portugal é bestial” não resulta necessariamente a conclusão “O BES está porreiro”, na medida em que existe sempre uma hipótese de o Banco de Portugal poder enganar-se e continuar bestial. O segundo problema é performativo. Por trágico desconhecimento da Teoria dos Actos da Fala de John Austin, o povo confundiu o acto ilocucionário (uma certa ênfase na solidez do BES) com o acto perlocucionário (um convite para continuar a investir no banco e não ir a correr vender as acções). É um erro lamentável. Razão tem Nuno Crato: numa sociedade com tantas fragilidades educativas, não só não vamos a lado algum como corremos o sério risco de nunca compreender o Presidente da República.

A ver se percebem este raciocínio de uma vez por todas. Se um dia se descobrir que o Homem nunca foi à Lua, e os jornalistas pedirem um comentário a Cavaco, ele dirá: “Eu já reparei que alguns dos senhores disseram e escreveram que o Presidente da República fez declarações sobre a ida do Homem à Lua. É mentira. É mentira! Eu nunca disse que o Homem foi à Lua. O que eu disse é que tinha visto na RTP o Homem a ir à Lua. As declarações eram sobre a RTP. Não sobre o Homem, e muito menos sobre a Lua. E mais nada.” Querem saber como alguém raramente se engana e nunca tem dúvidas? É fácil: basta tornar-se um filósofo da linguagem.

 

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