Cartas do Atlântico: Uma conferência peculiar em Bermuda

Se o referendo na Escócia preocupou muita gente, esse não pareceu ser o caso de uma vintena de nativos da língua inglesa reunidos em Bermuda, desde quinta-feira passada. O tema da conferência era “A relação especial entre US-UK: Um estudo sobre a liberdade”. Havia americanos (em clara maioria), britânicos, canadianos e dois “outsiders” (um do Brasil, outro de Portugal).

Na imponente entrada do hotel Fairmont/Bermuda, esvoaçavam as bandeiras de vários países. Mas, em destaque, estavam as de língua inglesa: Reino Unido, Canadá, EUA, um pouco ao lado, também da Austrália. Foi observado que estavam em falta, pelo menos, as bandeiras da Nova Zelândia e da União Indiana; e que a cortesia devia também abranger, pelo menos, o mais antigo aliado: Portugal. (Com efeito, o primeiro contacto que tive com o controlo de passaporte no aeroporto de Bermuda foi em português: o funcionário era natural de Bermuda, mas filho de açoreanos).

Por outras palavras, o local e atmosfera da conferência eram mais do que propícios a um cerrar de fileiras em defesa do “excepcionalismo” dos povos de língua inglesa e a uma condenação veemente da pulsão independentista na Escócia. Surpreendentemente, nada disso aconteceu. O clima era tranquilo, desapaixonado e até algo céptico relativamente ao “excepcionalismo” dos povos de língua inglesa. Com agrado, verifiquei que boa parte dos conferencistas via o (seu próprio) mundo de língua inglesa como parte de algo mais vasto e mais importante. Uns chamavam-lhe Ocidente, outros Mundo Livre, alguns mundo euro-atlântico, outros ainda a civilização cristã, ou também judaico-cristã.

Simultaneamente, foram enfaticamente rejeitadas todas as conotações étnicas do conceito de “povos de língua inglesa”. Esta rejeição era particularmente enfática entre os americanos, cada qual com diferentes antepassados não americanos: irlandeses, alemães, polacos, italianos, latino-americanos, escoceses… um ou outro também de descendência inglesa.

A saudável relutância dos meus anfitriões em assumir uma identidade especial só começou a ceder docemente quando o mundo das ideias passou para primeiro plano. E esse fenómeno teve início quando discutimos o famoso discurso de despedida de George Washington da presidência dos EUA, em 19 de Setembro de 1796.

Nesse dia, o primeiro presidente dos EUA e líder da guerra de independência anunciou que não aceitava os insistentes convites para concorrer a um terceiro mandato presidencial. Terminava as suas funções públicas, regressava tranquilamente à vida privada. Isso terá criado um saudável precedente para a futura limitação constitucional do número de mandatos.

Outro aspecto marcante da despedida de Washington foi a total ausência de animosidade contra a antiga potência colonial, o Reino Unido. Esta ausência marcante foi acompanhada de uma insistência enfática em não tomar partido nas rivalidades entre as potências europeias — o que não deixa de ser curioso num homem que dirigira as tropas americanas, com apoio da França, contra a metrópole britânica.

Uma conferencista americana, de origem latina, observou um outro aspecto curioso no discurso de Washington: a insistente ligação entre o espírito de liberdade e o espírito de religião. Recordo uma de várias passagens sobre este tema:

“Por mais que seja concedido à influência de uma educação refinada, tanto a razão como a experiência impedem-nos de esperar que a moral nacional possa prevalecer se o princípio religioso for excluído”.

Como observou Tocqueville meio século mais tarde, dificilmente seria encontrada na Europa continental esta tranquila associação entre espírito de liberdade e espírito de religião — sobretudo num líder revolucionário como foi o caso de George Washington.

E o espírito revolucionário de Washington tinha outras peculiaridades. Várias vezes condena, ao longo do discurso, o “espírito de inovação”, bem como o “espírito de especulação”. A ambos contrapõe a sabedoria fundada na “experiência, no tempo e no hábito”.

Talvez, no fim de contas, o discurso de George Washington possa sugerir que existem algumas peculiaridades dos povos de língua inglesa no interior da grande tradição ocidental. Winston Churchill sugeriu uma hipótese distintiva:

“O crescimento da liberdade e da lei, dos direitos do indivíduo, da subordinação do Estado às concepções morais fundamentais de uma comunidade abrangente. (…) Essas ideias foram expressas, ainda que talvez apenas semi-entendidas, na Magna Carta de 1215: a ideia de que o poder do Rei está limitado pela lei.”

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