Câmaras dão lição de gestão ao Governo

Em matéria de ajustamento, as autarquias deram uma lição ao Governo. No decorrer da era da troika as câmaras abateram 21% da sua dívida e chegaram ao fim do ajustamento com superavites nos seus orçamentos.

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No decorrer da era da troika as câmaras abateram 21% da sua dívida Nuno Ferreira Santos

O poder local está a dar uma lição ao Estado central sobre como fazer um ajustamento entre os seus gastos e receitas.

Nos últimos três anos, as câmaras municipais fecharam 112 empresas municipais, dispensaram 370 dirigentes e 517 assessores, reduziram os seus quadros em 9356 trabalhadores, extinguiram 1168 freguesias, abateram 21% à sua dívida e chegaram a 2013, ano em que Estado apresentou um défice de 4.9% do PIB, as autarquias foram capazes de registar um superavit orçamental de 5.1%. Na floresta das médias escondem-se casos tão dispares como o do Porto, que em Dezembro último demorava em média quatro dias a pagar aos seus fornecedores, e Portimão, que obrigava a uma espera de 1057 dias. Mas, não há quem discorde do quadro geral: as autarquias foram capazes de cortar despesas e, apesar de terem menos receitas para gerir, reduziram de quatro para 3% o seu peso no total da dívida pública do país.

Pegando nesta bateria de números que mostram um país autárquico capaz de se adaptar a exercícios financeiros exigentes, José Solheiro, secretário-geral da Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP), sublinha: “Os dados são indiscutíveis e servem para demonstrar que a imagem de despesismo e irresponsabilidade que muitos associam às câmaras é errada e injusta”. Neste clima de relativo regozijo, o Governo não quer deixar o brilho dos indicadores apenas na mão dos autarcas e reclama para si parte dos louros. “Há um conjunto muito forte de reformas que o Governo fez, quer de medidas de equilíbrio orçamental, quer de medidas de limite ao endividamento”, lembra o secretário de Estado da Administração Local, António Leitão Amaro. Que acrescenta: “O país não tem sido suficientemente justo com os autarcas e com o Governo”.

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No ajustamento financeiro das câmaras e freguesias, o Governo representou o papel de troika. No texto do programa de ajustamento, havia menção explícita a um aperto nas contas municipais (previa-se uma redução das transferências do Orçamento do Estado em 175 milhões de euros anuais, por exemplo), mas na sua relação com as câmaras, o Governo foi, de facto, além da troika. Ao todo foram aprovadas 11 medidas destinadas a obrigar as autarquias a reduzir gastos, a aumentar receitas próprias e a estabilizar os seus orçamentos. Essas medidas visaram as empresas municipais, o quadro do pessoal, a agregação de freguesias ou as regras de aquisição de bens ou de contratação de investimentos.

No essencial, o plano de reformas do Governo baseia-se no “Documento Verde” desenhado pelo ex-ministro Miguel Relvas. Além de propor um novo mapa autárquico e novas instâncias de governação supramunicipal (ver texto nestas páginas), o Governo desenhou um novo quadro legal orientado pela necessidade de impor a austeridade ao poder local. No vértice desta estratégia está uma nova Lei das Finanças Locais, mas não foi pelo seu alcance que o Estado central impôs severos controlos à despesa: foi através da Lei dos Compromissos, que limita os gastos à receita já cobrada e não à receita prevista como até agora. Ou seja, para gastarem dinheiro em obras ou aquisições, as câmaras têm de ter dinheiro na mão.

Pelo meio, o Governo teve ainda de criar, em 2012, um programa com uma linha de crédito para salvar municípios da insolvência, o Programa de Apoio à Economia Local (PAEL). Destinava-se a autarquias com prazos médios de pagamento aos seus fornecedores superiores a 90 dias. Mais de um terço dos municípios (110), sofriam desta falta e apresentaram as suas candidaturas. Ao todo, o programa já injectou nas economias locais 544 milhões de euros. Há mais 250 milhões em fase de tramitação. Mas a dotação da linha de crédito do PAEL, 1000 milhões de euros, não vai ser complemente utilizada. Há uns 200 milhões que sobraram. Não tanto por erro de previsão do Governo como por vontade das autarquias em resistir à “humilhação” do resgate. Aveiro, por exemplo, chega a ter o seu abastecimento de electricidade em risco por falta de pagamento à EDP, mas não recorreu ao PAEL.

Mesmo contando com poupanças globais estimadas pelo Governo em 82 milhões de euros anuais com a redução de trabalhadores, de dirigentes e de consultores, o exercício de equilíbrio das autarquias fez-se com dificuldade. Os gastos correntes caíram 19% e o investimento recuou 25%, mas por oposição a estas poupanças as câmaras têm de se debater com uma redução das receitas (19% desde 2010). Na intenção do Governo, o aumento esperado da colecta do IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis”, na sequência de uma reavaliação do valor das matrizes, iria reequilibrar os balanços municipais. Mas as contas do Governo, que previam um aumento de receita na ordem dos 700 milhões de euros, saíram erradas. “O aumento efectivo foi de cerca de 200 milhões de euros”, diz Rui Solheiro, que acusa o Governo de ter cometido “um erro enorme”.

Não admira por isso que para lá do brilho geral haja casos de autarquias no limiar da insolvência. Muitas não conseguem superar as dificuldades que vêm de trás. Nas contas da ANMP há 30 em situação de “asfixia financeira”. Ou seja, acumulam pagamentos em atraso e arriscam a ter falta de verbas para processar salários. Prevendo esse quadro de dificuldade, o Governo inscreveu na nova lei de Finanças Locais um Fundo de Apoio Municipal, “uma solução equilibrada para resolver os problemas de forma duradora”, na expectativa de Leitão Amaro. O Fundo, que substituirá o PAEL, está atrasado quase quatro meses.

Para lá deste mecanismo de resgate, a ANMP quer um quadro de financiamento a partir das receitas do Estado que reforce a transferência para as autarquias. “A nossa quota nessas receitas ronda os 8.8%, quando na União Europeia a média ronda os 20%”, justifica Rui Solheiro. Mas mesmo com menos dinheiro para gerir, a situação financeira do Poder Local pode ser usada como um bom exemplo de ajustamento. Em três anos, a dívida bruta das câmaras reduziu-se em 1700 milhões de euros, ou seja, 21%. “O caminho feito é impressionante. A troika registou esse desempenho”, diz Leitão Amaro. Verdade, diz Rui Solheiro, “as autarquias fizeram o que tinha de ser feito, mas fizeram-no como uma opção política consciente”. Agora, dizem, está na hora de voltarem a lutar por um pouco mais de folga. Com Margarida Gomes

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