Caixa de Pandora

A questão é a de saber quais as consequências de recorrer a donativos privados nesta campanha.

Ao formalizarem as candidaturas às eleições primárias para escolha do candidato a primeiro-ministro em nome do PS nas legislativas de 2015, António José Seguro e António Costa abriram uma caixa de Pandora na política portuguesa. E a caixa de Pandora que agora foi aberta tem implicações na política e na sociedade portuguesas, a três níveis.

Representam a introdução, sem preparação prévia e sem regras pré-acordadas, de uma inovação no funcionamento do sistema político-partidário. É uma inovação recente, feita à custa do enxerto de uma americanização que nada tem a ver com a tradição dos sistemas europeus. Abrem espaço ao regresso da actividade político-partidária a uma terra de ninguém no que se refere aos financiamentos.

Na qualidade de presidente da comissão eleitoral responsável pelas primárias, Jorge Coelho tem dado indícios de preocupação de que esta experiência no PS descambe em descontrolo, não só do ponto de vista da agressividade do debate, mas também no que se refere à criação de possibilidades de fiscalização oficial dos gastos e dos financiamentos da campanha. E esta semana foi fulcral neste domínio, ao serem entregues pelos candidatos os seus orçamentos de campanha, que previam ambos a recolha de donativos privados.

Assim, numa campanha em que o PS disponibiliza 300 mil euros divididos pelos candidatos, estes, além dos respectivos 150 mil euros que recebem do partido, ainda tencionam recolher donativos – Costa no valor de 13 mil euros e Seguro no valor de 15 mil euros. É certo que o problema se torna mais gritante com a soma quase ridícula que os candidatos fizeram questão de incluir de donativos privados. Mas qualquer que fosse a soma incluída, a questão é a de saber quais as consequências de recorrer a donativos privados nesta campanha.

Isto porque se estes donativos não puderem ser inscritos como donativos aos partidos – e para o serem têm que caber dentro das regras que existem e que não previam a existência de primárias – serão considerados donativos aos candidatos a título pessoal e, nessa condição, não são fiscalizáveis pela Entidade das Contas que funciona no âmbito do Tribunal Constitucional. E se isso acontecer, o facto é que o PS estará a abrir a porta ao regresso da vida partidária a um clima de suspeição de que possa haver relações promíscuas entre os políticos e interesses privados.

Esta questão entronca no que é o cerne da regularização da vida dos partidos dentro dos cânones éticos da vida em democracia. É conhecida a máxima de que “à mulher de César não basta ser séria, tem de parecer séria”, e é também do domínio público o esforço que tem sido feito para que a actividade política surja como transparente aos olhos dos cidadãos e para que os políticos não sejam vistos como gente potencialmente pouco séria, que se serve da entrega à causa pública para satisfazer interesses privados, a começar pela sua conta bancária.

É até curioso o facto de este alegado esforço de transparência na vida pública estar a ser um lema de campanha interna do actual secretário-geral, António José Seguro, político que, aliás, conhece bem os problemas que se colocam ao controlo e fiscalização dos financiamentos partidários, já que foi ele quem se encarregou deste dossier no passado em nome do PS, nomeadamente nos processos legislativos em que o regime de fiscalização das contas dos partidos e das contas das campanhas eleitorais foi sendo aperfeiçoado.

António José Seguro, ao lançar o processo das primárias, assim como o seu desafiante António Costa, ao aceitar disputar através deste recurso a liderança do PS, sabiam que estavam a entrar num caminho de inovação de procedimentos na organização da vida partidária cujas consequências não são previsíveis. E sabiam-no não só pelo que é a possibilidade de o Estado garantir a fiscalização do sistema, mas também pelas contradições que esta forma de escolha de candidatos a primeiro-ministro contém em relação à lógica do sistema político português, o qual não inclui sequer a eleição de um primeiro-ministro – por mais personalizadas que as lideranças políticas e a governação tenham sido nas últimas duas décadas, como salientou Marina Costa Lobo, no PÚBLICO, na quinta-feira.

Não se pretende aqui estar contra a manifesta necessidade de melhorar o sistema de funcionamento dos partidos e da vida política em geral, mas convém que haja o bom senso de não abrir a porta à desregulação da vida institucional e pública, a qual, em democracia, tem como pilar estruturante os partidos políticos.

Resta esperar que haja sensatez da parte dos candidatos, bem como que Jorge Coelho consiga evitar estragos e que todas as despesas e todo o dinheiro que os candidatos venham a angariar junto de privados seja arrumável dentro da contabilidade normal do PS. Sob pena de uma experiência de eleições primárias feita em nome da aproximação dos cidadãos dos partidos e da política resvalar para um resultado que se traduza numa desconfiança ainda maior em relação à política partidária.

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