Autarquias: a eternização no poder!

Provérbio árabe: “…onde há dois juristas, há, pelo menos, três opiniões…” .

A Assembleia da República (AR) limitou os mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias (presidentes das câmaras municipais e juntas de freguesia) a três mandatos consecutivos.

Não diz, na respectiva lei, as motivações, ou razões.

Mas diz nas discussões que, na altura, se travaram no Parlamento.

Toda a lei tem um sentido, um objectivo social e político: a oculta ”intenção do legislador”, mesmo se o órgão gerador da lei é colectivo (a AR) que se não busca ou encontra por declarações na praça pública, adequadas às miras partidárias, antes percorrendo e respeitando as regras de interpretação das leis, de qualquer lei. Nem se encontra por força de qualquer bisturi que penetre no íntimo do autor (es) materiais da norma, ou normas. E é o próprio legislador, o Estado, quem, noutra lei (Código Civil, etc) esmiúça o como e o quando de uma tal interpretação normativa.

Isso se diz hermenêutica jurídica.

Olhemos as eleições autárquicas e a bizarra, a propósito, ou despropósito (?), comédia que grassa por aí.
O presidente da câmara municipal de Vila Nova de Gaia, por quem nutro apreço pessoal e pelo seu desempenho de funções, que bem conheço, quer, de há muito, sem dizer que o anseia, tomar o lugar do actual presidente do Porto, substituição essa que, em desempenho político, diga-se, nem é nada de particularmente espinhoso. É olhar a montante, pelo retrovisor. Bastante imaginação acolá, um deserto de ideias aqui.

O presidente da câmara de Sintra, que não conheço, se não sobre os seus aprofundados e meticulosos conhecimentos futebolísticos, quer sentar-se na cadeira do candidato a candidato de secretário-geral do Partido Socialista (PS).

Na dúvida insanável, que não o é, mas sentindo-o ou sabendo-o, que é o mais certo, que tal anseio cobre-se de um manto de duvidosa (?) legalidade, o presidente da câmara de V.N. de Gaia parece já ter escolhido o seu delfim que, obedientemente, os restantes “eleitores” simularam ter votado: um secretário de Estado para o Porto e um deputado para V.N. de Gaia aquele, só por coincidência, ou acaso, professor catedrático e, rezam as crónicas, independente, mas sempre colado ao Partido Social Democrata.

Ora isto exibe, em primeiro, um claro apego doentio ao poder, ou desespero do “desemprego” se, aqui ou ali, se não agradar a quem manda nos partidos.

Em segundo lugar, o como a “ violência política”capturou os cargos do Estado e das autarquias. Não se trata, assim, sem qualquer juízo de intenção, de ser patente (os factos não falam?) a evidente apetência faminta e engordamento galopante de Estado e municípios: bailam e saltam sempre os mesmos de um lado para o outro. São profissionais da política. E repercutem nos amigos os cargos que deixam para ocupação doutros.

E são “estes milhares de profissionais da política” que o legislador pretendeu que fossem à vida. Que o Estado é de todos, não apenas dos que, um dia, e por vicissitudes várias, foram democraticamente eleitos, com a força e influência social que os partidos supõem ter adquirido nos mercados. De eleitores de boa fé, claro: eleitos para deputados para membros do governo e, quem sabe, administradores de alguma empresa pública que ainda não tenha sido transaccionada a preço justo, como o BPN!!! E, veja-se lá!, ao mesmo tempo, para presidentes de câmara. Os catedráticos que retomem a sua cátedra, os juristas o seu Direito, os médicos a sua Medicina. E por aí fora… A política não tem carácter profissional. As autarquias e sua liderança, a tempos, reivindicam novos actores e líderes, novas ideias, novos projectos. E a democracia não está, nem pode/deve depender (ou servir?) dos que, durante anos a fio, a dirigiram, mesmo que com competência e independência. O que, em casos que sobejam, até nem sucede. Leiam-se as decisões judicias e estas não abundam mais que deviam.

Mas há ainda mais e, sem mesuras: o legislador pretendeu que, com a eternização no lugar, a habituação, o “conhecer os cantos à casa” amolecessem a tal independência, o amiguismo se instalasse, se estabelecessem conluios, os partidos, aparentemente de fora, impusessem os seus interesses acima dos das populações, nove anos aqui, mais nove ali, mais nove acolá, mais em…, mais em ….é o estado assaltado pelos mesmos ad aeternum…E os outros tão ou mais válidos?

Que se submetam ao voto. Verdade. E as máquinas partidárias que fazem primeiros-ministros, ministros, quanto mais autarcas?

Não faz sentido algum.

E a comodidade dos sofás?

As benesses?

Os interesses?

Os negócios?

E os demais etc, etc…?

Todos ouvimos, lemos e sabemos. Mas só aqui ou ali.

De modo que, tanto quanto aqui se pensa, a lei limita a nove anos, na anterior ou outra qualquer autarquia, o tempo limite de exercício de tais funções públicas. Visto do modo contrário: um autarca, na óptica que se passeia por aí a ver se pega, bem poderia sê-lo cem anos, duzentos, ou mais, o que, com a crescente durabilidade dos políticos, não é estranho vir a suceder: o Povo de Portugal vai-se avezando a tudo! Veremos!

Porém, o absurdo basta-se a si próprio: Absurdo.

A lei não acolhe o absurdo. Antes o rejeita.

Afeiçoa o bom senso. Como na vida.

Não esquecer, porém, o ditado árabe.

A Comissão Nacional de Eleições que o diga. Até já disse, colando-se às palavrinhas da lei. E a tal “intenção do legislador”?

Procurador-Geral Adjunto

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