Astérix e a social-democracia

1.Emmanuel Macron é o novo Ministro da Economia francês. Tem 36 anos, foi assistente do grande filósofo Paul Ricoeur, revelou-se brilhante nos estudos económicos, foi banqueiro de negócios no grupo Rothschild e nos últimos anos desempenhou funções no gabinete do Presidente François Hollande. O seu percurso é, obviamente, excepcional. Talvez só em França uma aventura destas pudesse suceder. Ocorre que Macron constitui mesmo a derradeira esperança do hollandismo.

Vale a pena determo-nos na análise do que se está a passar em França: fustigado pelas sondagens, o Presidente francês decidiu jogar tudo por tudo no relançamento económico do seu país. Nessa perspectiva renunciou parcialmente à componente redistributiva do seu programa e optou pela adopção de uma nova orientação política focada no objectivo do reforço da competitividade empresarial e da progressiva redução do défice orçamental. Face a uma Alemanha que apresenta melhores resultados ao nível dos principais indicadores económicos, dificilmente restaria outro caminho aos franceses. O pecado original de Hollande consistiu na cedência, em momento eleitoral, a uma certa demagogia anti-liberal tão característica de algumas correntes da esquerda gaulesa. Está a pagar um elevado preço por isso.

Macron, levianamente acusado de prosseguir uma linha social-liberal, representa o contrário do seu antecessor na elaboração de uma política económica para o seu país. Montebourg, o carismático ex-Ministro que o antecedeu, simbolizava a velha esquerda francesa: escassamente europeísta, radicalmente anti-globalização, anacronicamente ultra keynnesiana. É certo que lhe emprestava o brilho de um discurso político muito apelativo. O que é verdade é que falhou. É hoje muito difícil regressar à vetusta aldeia de Astérix. Por muito que as figuras criadas por Goscinny e Uderzo continuem a suscitar a nossa admiração, a verdade é que os romanos traziam a civilização. Serão sempre os maus da fita no nosso imaginário lúdico, o que tem o mérito de nos reconciliar com uma certa dimensão infantil. Como é bom que assim seja. Noutros planos as coisas não se passam da mesma maneira. Hollande recusa-se a ser uma espécie de chefe da aldeia gaulesa motivado pela expectativa de que o dia de hoje não será a véspera do momento em que o céu lhe cairá sobre a cabeça. Até porque o céu já lhe caiu várias vezes sobre a cabeça. Por isso mesmo nomeou Manuel Valls Primeiro-Ministro há uns meses atrás e acaba de consolidar essa opção através da escolha de Macron para o Ministério da Economia.

O que significa esta mudança? Duas coisas, desde logo: a insubordinação perante uma dogmática esquerdizante arcaica e a opção por uma via social-democrata empenhada em conciliar o incentivo à modernização económica com a salvaguarda dos aspectos fundamentais do Estado-Providência. Nisso Hollande tem sido corajoso. Ele compreende quão nefastos se revelam alguns atavismos que prejudicam a capacidade de afirmação do seu país. Ao optar pelo caminho que agora delineou envia uma mensagem clara à potência dominante no espaço europeu, a Alemanha: os franceses não aceitam uma subjugação por motivos económicos ao mundo germânico. Isso obriga à apresentação de resultados. É aqui que Macron entra em cena: o seu papel é o de contribuir para o relançamento da economia francesa no mundo. Não é um papel fácil. O seu sucesso é, contudo, imprescindível para a legitimação da esquerda francesa enquanto solução respeitável de governação do país. Não tenhamos ilusões - nenhum povo na posse plena das suas capacidades de escrutínio político está disponível para conceder a sua confiança a propostas tribunícias, estritamente assentes na retórica da denúncia. É certo que a esquerda integrará sempre um lado crítico e desconstrutivo, mas só suscitará uma adesão eleitoral permanente se conseguir projectar-se para além disso.

Na realidade François Hollande fez uma opção idêntica àquela que François Miterrand teve de levar a cabo em 1983. Também nessa ocasião a opção por uma participação activa no projecto europeu se sobrepôs à tentação de um isolacionismo fundado num discurso profundamente anti-liberal. Agora a questão coloca-se de forma diferente: o reforço da capacidade competitiva da economia francesa constitui uma condição imprescindível para a retoma de uma ligação em plano de igualdade com a Alemanha. Isso implica a escolha de uma via algo heterodoxa face aos rígidos cânones tradicionais do socialismo francês. Contudo, é imperioso que assim seja, já que só dessa forma se garantirá um reequilíbrio no âmbito do motor político da União Europeia.

Emmanuel Macron tem, por isso, uma tarefa clara e do seu sucesso depende o futuro da esquerda democrática francesa. O seu objectivo passará por conciliar uma economia da oferta com uma economia da procura ignorando, providencialmente, leituras ortodoxas de sentido contrário e buscando apenas a concretização de um equilíbrio justo. Esse objectivo é, como demonstram outras experiências nacionais, plenamente alcançável. Num contexto reconhecidamente difícil, o governo gaulês terá de promover uma reconciliação com os cidadãos, condição imprescindível para a recuperação de um entusiasmo que parece ter-se esgotado na própria noite eleitoral. A ver vamos se a concretização de tal equilíbrio se poderá vir a revelar possível. Hollande, o mais atacado e impopular Presidente da V República, tem ainda uma possibilidade de se reconciliar com o destino do seu país. Ele sabe-o e por isso apostou tudo nas recentes remodelações. É razão suficiente para cultivarmos alguma esperança face ao seu destino.

2. Por cá, António José Seguro e António Costa prosseguem a saga das primárias. Tenho reparado, sobretudo, nos argumentos aduzidos pelos apoiantes de um e de outro em múltiplos textos espalhados por diversos jornais. Raramente surpreendem pelo grau de elaboração do pensamento que exprimem. Infelizmente predominam os lugares comuns, os preconceitos adivinháveis, as adesões fortemente emocionais. Lêem-se mesmo coisas do arco-da-velha. É pena que assim seja, já que umas eleições primárias poderiam e deveriam estimular um verdadeiro confronto de propostas políticas sérias e bem fundamentadas. Claro que quer António Costa, quer António José Seguro são melhores do que os louvaminhas que os acolitam. Isso não deixará de se manifestar nos debates que estão em fase de realização. Uma coisa um e outro não devem perder de vista – o olhar crítico que o país projecta em cada um deles. Isso deve obrigá-los a evitar dois erros: a exaltação de uma linguagem passional e a abdicação de um discurso programático. Mau seria que os portugueses ficassem com a imagem de um PS reduzido a uma confrontação entre a pureza ética e a superioridade carismática. Se assim fosse seria lícito congeminar a existência de um grande vazio doutrinário. O que está longe de corresponder à realidade num partido tão denso como é o Partido Socialista.

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