As primeiras rabanadas do ano

Aquela geração, sem nunca se filiar num partido, foi capaz de uma enorme mobilização política e de uma influente participação cívica.

1. Ontem, pela primeira vez, o meu Natal não começou a 22 de Dezembro. 22 de Dezembro era o dia em que família e amigos vinham até casa dos meus pais para comerem as primeiras rabanadas do ano – rabanadas deliciosamente confeccionadas pela minha mãe. O grupo de amigos era invariavelmente o mesmo e já se reunia para o efeito antes mesmo de eu nascer. Era um grupo de casais que, durante mais de quarenta anos, se juntava todos os sábados, com o pretexto – mais pretexto do que qualquer outra coisa – de jogar cartas. Ainda no ano passado se reuniram a 22 de Dezembro, desta feita com a família muito alargada e direito a missa, pois o meu pai completava 80 anos. Pelas vicissitudes da vida, da doença e da morte, alguns dos casais já estavam incompletos, mas, pelo menos, um dos membros de cada casal lá esteve para garantir a tradição.

2. Falar sobre esta tradição – a das cartas semanais ou a das rabanadas anuais – é falar de política, daquela que verdadeiramente interessa e importa aos cidadãos e ao país. Aquela geração, sem nunca se filiar num partido, foi capaz de uma enorme mobilização política e de uma influente participação cívica. Era uma geração que fez a sua aprendizagem cívica na vitalidade da Igreja pós-conciliar, em especial, numa diocese – a diocese do Porto – marcada pela ausência do seu bispo. Era uma geração imediatamente anterior ao início da guerra colonial e que, por isso, foi a última a não ser chamada a fazer a guerra de África. Marcava uma corrente que não tinha nenhuma “politização” familiar, que não nutria qualquer simpatia por Salazar e que, já depois daquela iniciação em movimentos católicos de vária índole, acreditava genuinamente em Marcello Caetano e na primavera marcelista. Embora com origens sociais diferenciadas, em meados dos anos 1960, consubstanciava aquilo que se poderia chamar uma “burguesia média-alta”, mais média em termos económicos e mais alta em termos culturais. Numa sociedade ainda muito cheia de pobreza e de analfabetismo, viviam – embora com os costumes herdados da “pedagogia salazarista” de sobriedade, poupança e economia – acima do trem de vida da generalidade dos portugueses.

3. Estes homens e estas mulheres iniciaram-se em grupos católicos que, no final dos anos 1960, estavam mais activos do que nunca. Havia os cursos de cristandade, as equipas de Nossa Senhora, as já vetustas conferências de S. Vicente de Paula ou a moderna Escola de Pais Nacional. Começavam, de resto, aqui e ali, a fundar as primeiras associações de pais. Jovens casais, normalmente entre os trinta e os quarenta, foram-se treinando no apelo cívico e na criação de um tecido e de uma rede. Havia nomes que se destacavam pelo seu dinamismo e carisma, muitos dos quais haveriam de marcar a vida política da democracia. O mais sonante, e com um ímpeto mais progressista, era o de Francisco Sá Carneiro – que, mais ou menos vaga e remotamente, estes círculos do “catolicismo” do Porto abertamente reconheciam.

4. Quando veio a revolução, estas mulheres e estes homens, embora não o soubessem, estavam preparados para a intervenção cívica. Recordo-me de que, no dia 25 de Abril, o colégio de freirinhas em que terminava a minha pré-primária (a “infantil dos grandes”, como então se dizia) foi invadido ao fim da manhã por uma manifestação de alunos do Liceu de Gaia, com os seus quinze e dezasseis anos. Entretanto, e como sempre acontecia ao meio-dia, chegou o meu pai para me ir buscar e a mais algumas crianças da vizinhança. Percebendo o que se passava, não perdeu tempo e foi directo até ao Quartel da Serra do Pilar chamar o comandante do regimento, para ver o que fazer àqueles estudantes que não saíam das instalações do colégio. A mobilização começara logo no primeiro dia.

5. Esta foi a geração que, com os filhos ao colo e pela mão, esteve em todas as manifestações da Avenida dos Aliados contra o PREC e a sua deriva totalitária. Esta foi a geração que criou associações de pais em todas as escolas para tentar travar o caos que entretanto se instalara no ensino e que, um dia, disse “preto no branco” (o meu pai estava lá) a Vítor Alves, ainda ministro da Educação, que, se parasse as aulas por dois anos, o devorariam vivo. Esta foi a geração que, no essencial, apoiou o PPD, mas também o PS e o CDS, nos anos difíceis de 1975-76; que participou até altas horas da madrugada nas intimidantes reuniões de comissões de moradores que queriam decretar ocupações e desalojamentos; que impediu, em muitas fábricas e escritórios, que as greves e os protestos alastrassem e as empresas fossem destruídas. Estes foram aqueles que, apesar da sua formação católica e de pressões mais fundamentalistas, apoiaram incondicionalmente Sá Carneiro, não permitindo que a sua vida privada fosse misturada com a política. Estes foram aqueles que, em alguns casos, mesmo vivendo pior depois da revolução, acharam sempre que a democracia tinha valido a pena e que o país era melhor e mais justo hoje do que antes. Acreditavam piamente no Estado social, no Serviço Nacional de Saúde e na necessidade imperiosa de garantir uma vida digna aos mais carenciados.

6. Muitos deles assistem ou assistiriam a esta degenerescência do regime e das suas supostas elites financeiras e políticas com a maior perplexidade e desesperança. Porque eles, sem fundamentalismos nem hipocrisias, procuraram ser cidadãos exemplares. Proprietários de prédios, profundamente afectados pelo congelamento das rendas, nunca deixaram de passar um recibo aos seus inquilinos. As mulheres, grande parte delas donas de casa, nunca forjaram pagamentos para a Segurança Social, a fim de terem um dia um arremedo de reforma. Os homens orgulhavam-se de nunca terem solicitado a um médico uma baixa ou um atestado que pudesse ludibriar o Estado e seus os concidadãos. Os impostos eram tão detestados quanto sagrados.

Pela primeira vez, o meu Natal não começou a 22 de Dezembro. Começará a 24 de Dezembro. E lá estarão, tardias, as primeiras rabanadas do ano.

SIM e NÃO

SIM. Papa Francisco. O degelo nas relações entre Cuba e os EUA é uma boa notícia e revela inteligência de ambas as partes. Vai mudar o mapa político das Américas. E lá esteve, uma vez mais, o homem de boa vontade.

NÃO. Regime turco. O Estado islâmico e a Rússia concentram – e bem – as preocupações. Mas a deriva autoritária que varre a Turquia não prenuncia nada de bom. E está precisamente entre aqueles dois focos de problemas.

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