As primárias foram a surpresa na “batalha do Vimeiro”

Numa reunião tensa, que durou perto de seis horas e juntou 297 dirigentes do PS no Hotel do Vimeiro, nada ficou decidido. Seguro quer primárias para escolher “o candidato do PS a primeiro-ministro”. Costa aceita, mas mantém a intenção de disputar a liderança do partido. Há mais reuniões a caminho.

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Seguro tirou um coelho da cartola e surpreendeu os apoiantes de Costa Nelson Garrido

“Já ganhei grande parte da guerra.” Álvaro Beleza, médico, membro do secretariado do PS, sorria. “Defendo isto há 30 anos… E não sou só eu. Muitos apoiantes de António Costa também defendem as primárias, como João Tiago Silveira. E pessoas de fora do PS, como Rui Tavares. Esta é a proposta que pode acabar com as lógicas de aparelho. Até me comovi…”

Estávamos quase na pausa para almoço e muitos dirigentes da Comissão Nacional do PS, o órgão máximo entre congressos, juntavam-se na esplanada do 3º piso do Hotel Golfe Mar, um piso abaixo da sala onde decorria a reunião, desde as 10h45. Hora de descompressão, dois dedos de conversa, muitos cigarros.

Lá dentro já falaram os dois homens que tornaram esta reunião no acontecimento dramático que se presencia. Seguro falou primeiro, durante 39 minutos. “Não me demito de secretário-geral do PS [muitas palmas e vivas]. Na minha consciência não encontro uma razão para me demitir. Não ignoro que temos um problema. Já não é só um problema interno. Agiríamos mal se não enfrentássemos esse problema.”

Antes de se referir ao “problema”, Seguro apontou o dedo à “irresponsabilidade”: “Já disse ao António Costa e volto a dizer-lhe olhos nos olhos: uma irresponsabilidade provocada por ti.”

António Costa ouviu, sentado na sala. Antes, já vira recusada a sua proposta de alteração da ordem de trabalhos da reunião, para permitir que se discutisse a possibilidade de um Congresso extraordinário e marcação de eleições antecipadas. Teve de recolher as assinaturas necessárias (cerca de 75 entre os presentes na reunião, 25% do total) para forçar a convocação de novo encontro, dentro de 15 dias.

Seguro trouxe uma “surpresa”, e teve efeito. Em vez de aceitar marcar um congresso e disputar com Costa a liderança do partido, o secretário-geral propôs deixar aos “militantes e simpatizantes” (estes últimos têm estatuto próprio nas regras do partido) a escolha do “candidato do PS a primeiro-ministro de Portugal”. Como? Através de “primárias”. A isto, Seguro chamou “uma solução política inovadora”.

Na prática, tudo fica como está no partido: o secretário-geral, os órgãos dirigentes, não são alterados. Nas primárias, que vários dirigentes próximos de Seguro avançaram ao PÚBLICO poderem vir a ocorrer em Setembro, apenas se procederia à escolha de um candidato a primeiro-ministro – uma figura que não existe nos estatutos e, em rigor, nem é sufragada directamente pelos eleitores.

Mas cedo surgiram as dúvidas. Pedro Delgado Alves, jurista, apoiante de Costa, questionou Seguro sobre a necessidade de alterar os estatutos do partido, para incluir esta forma de eleição. O secretário-geral garantiu que tal não seria necessário. O deputado considera que é, uma vez que as primárias já foram chumbadas num congresso (defendidas por Assis, que agora está com Seguro, que foi quem na altura as rejeitou). Ainda no ano passado, João Tiago Silveira, apoiante de Costa, defendeu este método, sem êxito, junto da actual direcção.

Se a política não desse tantas voltas, talvez a reunião do Vimeiro não fosse tão demorada, nem tão dramática.

Dentro de portas, fechadas, os dirigentes trocaram acusações a raiar o insulto. António Galamba e Miguel Laranjeiro terão sido os mais veementes, do lado do secretário-geral. Carlos César, do lado de Costa, comparou a proposta das primárias à “liderança bicéfala do Bloco de Esquerda”, porque, em teoria, o secretário-geral pode perder e continuar no cargo e haver um candidato a primeiro-ministro diferente.

Cá fora, Costa usaria esse mesmo argumento: “Estou disponível para todas as soluções, desde que sejam claras. Uma solução bicéfala, ao estilo Catarina Martins e João Semedo não me parece clara. Pode ser boa para o Bloco, mas não para o PS.”

Eurico Brilhante Dias e Álvaro Beleza não acreditam nessa possibilidade. Estes dois dirigentes do secretariado repetiram que não vale a pena traçar cenários sobre o resultado das primárias. Mas deram a entender que o secretário-geral pretende ganhá-las e “tirará as devidas consequências” caso perca.

Na próxima terça-feira, Seguro promete responder a estas questões na reunião da Comissão Política. Apresentará, então, uma proposta de “regulamento para as primárias”. Aí se ficará a saber qual o modelo, muito embora pareça claro que não serão primárias “abertas” (em que se candidatam e votam pessoas não-inscritas no partido, mediante um compromisso ou uma contribuição financeira)..

Resta tentar perceber a razão, para além da normal “táctica” política, que fizeram saltar as primárias para a ribalta.

Seguro falou disso, no seu discurso inicial. “O PS tem dois grandes adversários políticos. Um deles é a coligação PSD-CDS, que já vencemos. O outro é a indiferença e até a repulsa em relação ao sistema político.”

As primárias são essa tentativa de mostrar o PS empenhado na abertura à sociedade. Há uma falha que Seguro reconhece no resultado das europeias: “Faltou congregar os votos de descontentamento em relação ao sistema político e ao sistema partidário. Os votos brancos e em Marinho Pinto atingiram 15%.”

Mudar o sistema eleitoral
Para conseguir “atrair os desiludidos e os desencantados”, Seguro quer, também, mudar as regras do sistema eleitoral. Diminuindo, desde logo, o número de deputados no Parlamento para 180 (são 230). Com menos 50 deputados, os pequenos partidos (PCP, Bloco, CDS e restantes) terão mais dificuldade em eleger. Essa tem sido, aliás, a razão para que o actual Governo, de coligação, não avançar para essas propostas.

Mas no PS o assunto não é pacífico. Assis considerou, no passado, que essa seria “uma cedência à demagogia”. E Costa também a rejeitou, apesar de ter estudado a alteração da Lei Eleitoral, quando ocupou a pasta de ministro de Estado, entre 2005 e 2007.

Seguro quer, ainda, apertar as regras das incompatibilidades – nomeou o caso dos deputados que são advogados – e escolhe a corrupção como alvo.

Mais do que o método de escolha do líder, esta é uma das diferenças principais entre Costa e Seguro. O discurso “renovador” e ético, que é central para Seguro, é visto como uma cedência ao discurso “populista” no lado que apoia Costa. E este pode vir a ser um debate mais interessante. Seja na campanha das primárias, seja num futuro congresso.
 

   





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