As exigências de Cavaco Silva

Como as coisas estão, Cavaco só pode investir António Costa se desinvestir em si próprio.

À hora a que escrevo, a página oficial da Presidência da República informa-nos de que: “Presidente Cavaco Silva observou unidade de aquicultura da IlhaPeixe”, “Presidente visitou em Câmara de Lobos nova unidade produtiva da Vinhos Barbeito”, “Presidente inaugurou no Funchal Design Centre Nini Andrade Silva”. Consta que também houve divertidas considerações sobre o tamanho da banana da Madeira. Isto é esquisito? Sim, há que admitir que é um pouco esquisito. Não querendo eu desmerecer a machucha importância da Sétima Jornada do Roteiro para uma Economia Dinâmica, assim de repente lembro-me de um ou dois assuntos mais urgentes para Cavaco tratar.

E se eu acho isto esquisito, imaginem os socialistas, os comunistas e os bloquistas, que se desdobraram, num estado semicatatónico, em entrevistas e depoimentos enquanto durava o périplo madeirense do Presidente da República. “É um escândalo!”, gritou Jorge Lacão. “É indigno!”, sussurrou Marisa Matias. “É um gangster!”, ululou o deputado do PS Tiago Barbosa Ribeiro. Convencidíssima de que a jogada de António Costa foi limpinha, limpinha, a esquerda olha agora para Cavaco como se ele fosse um apanha-bolas a queimar tempo para impedir a equipa contrária de ganhar o jogo. Só há um problema com tão arguto raciocínio: Cavaco não é um apanha-bolas. Não agora. Não nesta altura do campeonato. Durante boa parte do seu mandato, a Constituição, de facto, atribui ao Presidente pouco mais do que um papel de figuração. Mas, neste preciso momento, Cavaco Silva é um verdadeiro árbitro do sistema político, e é tão constitucional dar posse a António Costa como não dar posse a António Costa.

Mais do que isso: se Cavaco assinasse de cruz os papelinhos que o secretário-geral do PS andou a congeminar com a esquerda, sem reclamar garantias adicionais, estaria a trair as suas funções de contrapeso do regime e a imolar o discurso que proferiu no dia 30 de Outubro. Foi há apenas 20 dias, mas, dada a falta de memória generalizada, convém recordar as suas palavras e a utilização de um verbo pouco dado a subtilezas – exigir. Disse Cavaco: “Exige-se ao Governo que respeite as regras europeias de disciplina orçamental, nomeadamente o Pacto de Estabilidade e Crescimento, os pacotes legislativos denominados Six Pack e Two Pack e o Tratado Orçamental”. E, para quem tivesse dúvidas, lá veio o verbo outra vez: “Exige-se, igualmente, que o Governo respeite os compromissos assumidos pelo Estado português no âmbito da União Bancária.”

Não é “aconselha-se”. Não é “recomenda-se”. Não é “seria porreiro, pá”. É “exige-se”. E eu continuo sem ver como é que estas exigências são cumpridas pelos três papelinhos assinados pelo PS. Aliás, tendo em conta que a Europa não é referida uma só vez, será difícil encontrar por ali qualquer interpretação generosa que permita inferir que Bloco, PCP e PEV estão disponíveis para aceitar tais responsabilidades. Ah, esperem, é verdade: os três partidos assumiram que aquilo que será posto em prática é o programa eleitoral do PS, e o programa do PS assume o respeito pelos compromissos europeus. Mas aí, vão-me desculpar: se o programa do PS assume os compromissos europeus e se o Bloco, o PCP e o PEV assumem o programa do PS, então eles que apliquem a propriedade transitiva à política e assinem de uma vez por todos um acordo decente. Como as coisas estão, Cavaco só pode investir António Costa se desinvestir em si próprio.

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