As eras não acabam sozinhas

A verdadeira construção de uma nova era não ocorre de forma “natural”.

Voltou nos últimos dias, por causa da queda de Ricardo Salgado no seu “império” do Banco Espírito Santo, a conversa do “fim de uma era”. Não pensem nisso. Já deveríamos ter aprendido com a crise de 2008 que as eras não acabam sozinhas; degeneram.

Dizer que estamos no fim de uma era é tão frequente quanto presenciá-la é raro. Isso provoca um erro de paralaxe. Um sistema vicioso pode continuar mesmo para lá do seu colapso moral. Uma era só acaba quando é substituída, e para isso não basta esperar pelo seu fim. É necessária uma ação consequente e deliberada.

Quando a bolsa de Nova Iorque colapsou em 1929, e um banco austríaco chamado Creditanstalt abriu falência em 1931, os vícios do sistema então vigente eram bem conhecidos e vinham do início do século. Nos EUA, entre o primeiro presidente Roosevelt (Theodore), um republicano progressista, que tentou combater os monopólios mais poderosos, e o segundo Roosevelt (Franklin Delano), um democrata progressista, que construiu um embrião de estado social naquele país, passaram trinta anos. E, na verdade, só depois da II Guerra Mundial as grandes desigualdades sociais diminuíram a sério naquele país e a classe média se expandiu.

Na Europa, a história é, como sempre, mais plural. Mas mesmo na Suécia, o modelo social-democrata não nasceu imediatamente por reação à Grande Depressão. As reformas das leis do trabalho demoraram quase 20 anos a ser completadas, durante as décadas de 1940 e 1950, e também só após a guerra se implementou o modelo completo de taxação progressiva, cooperação entre trabalhadores e patrões para definição de tabelas salariais transversais e pleno emprego. O consenso social-democrata demorou décadas a atingir, e quando isso aconteceu, já não era só social-democrata: na Europa do pós-guerra, mesmo os democratas-cristãos participaram na consolidação de um sistema que hoje é visto como sendo de esquerda radical.

A lição a extrair é que a verdadeira construção de uma nova era não ocorre de forma “natural”, nem simplesmente porque se descobriu que o rei ia nu. Não é porque os antigos patrões, antigos magnatas ou antigos banqueiros sofreram humilhações públicas que a maré muda. A substituição de uma era por outra depende de uma ação continuada (e coletiva) de âmbito político. E para isso são necessárias maiorias; maiorias sociais e maiorias políticas que saibam de onde vêm, para onde se dirigem, e que obstáculos há pelo caminho.

Os exemplos históricos também funcionam ao contrário. Quando Thatcher e Reagan estavam no poder, nos anos 1980, as suas ações revolucionárias eram apenas o início de uma era. Nos anos 1990, até os partidos socialistas tinham sido colonizados pela doutrina neoliberal. Hoje estamos no apogeu, e não no fim, desse movimento socialmente regressivo.

Os vícios do sistema continuarão intocados até que uma ação política consistente, consequente e prolongada, protagonizada por novos atores políticos, possa finalmente encerrar esta era. Não é porque Ricardo Salgado caiu que Portugal mudou. Portugal só mudará quando os seus cidadãos conseguirem, sustentadamente, construir a aliança social e política que possa iniciar a recuperação do desenvolvimento económico e da justiça social no país.

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