Areia na engrenagem

A candidatura de Costa tem contra ela um manifesto excesso de expectativas, extravasando em muito os eleitores socialistas.

Semana vertiginosa. Os resultados das europeias passam de uma previsão de muitos pontos do PS à frente, para o PS à frente com poucos pontos. Com a máquina comunicacional partidária a empurrar Assis para declarações jubilosas precoces e afinal não fundamentadas. Com Seguro a anunciar um triunfo que não teve, uma frustrante maioria de um deputado apenas, 150 mil votos acima do competidor, menos votos que em 2009 e muitos fugidos para parte incerta: Livre, Marinho Pinto e brancos somam 15%.

Um amargo na boca que augura o pior para daqui a 14 meses. Com um PSD reduzido ao osso (sem sabermos onde pára o CDS), compensando a sua clamorosa derrota com a frustração dos socialistas. Estas ambíguas eleições, sem extrema-direita xenófoba, são bem a crónica do nosso descontentamento com a incompetente, frustrante e torcionária Europa.

Nos dias seguintes, o natural avanço de Costa, seguro dos seus 50% de eleitores em Lisboa, criticado pelo local do anúncio e por atacar um vencedor, ainda que escasso. Depois o completo desajuste do círculo à volta de Seguro, incapaz de ler a realidade, insistindo em defesas administrativas, agarrados a uma suposta violação estatutária que só poucos viam. Foi preciso que a avassaladora maioria dos media lhes pusesse o sal na moleirinha: se Seguro recusasse o Congresso, enterrava o partido, batendo no muro daqui a 14 meses. Sim, porque poucos já acreditam em milagres de conversão súbita da opinião pública à assertividade comedida do PS, incapaz de gerar sobressaltos, entusiasmos, quanto mais maiorias impositivas. Depois tudo foi mudando, devagar, mais devagar que o devido, até à Comissão Nacional do último sábado. Os apoios administrados começavam a fenecer, os quadros socialistas confrontados com o mar de lama da instabilidade futura aspiram à mudança, o militante número um não poupava as palavras.

Era previsível este desenlace? Falando só por mim direi que me surpreendeu até dois dias antes das eleições. Quando por descargo de consciência fui indagar das possíveis posições do meu círculo, deparei com recusas firmes, tendências para Marinho e Tavares e sobretudo com firmes disposições de voto, sim, mas em branco. Bem gastei o meu latim, sem sucesso. Só os resultados me abriram completamente os olhos. Creio não ser o único a ter tido surpresas.

Aqui chegado, uma declaração de interesses: apoio António Costa por entender que ele será o mais capaz de unificar o PS, aproximá-lo da sociedade, combater a incompetência e o fanatismo da governação actual e devolver ao País alguma da dignidade perdida nestes três pavorosos anos. Mas tenho uma palavra para Seguro. Foi sempre um amigo estimável, pessoa com permanente desejo de acertar, um devotado militante. Percorreu três anos difíceis sem desfalecer. Mas não conseguiria entregar a carta. Só ele poderá analisar o que com a sua liderança se passou: fracos acólitos? Complexo freudiano de afastamento dos mais velhos? Firmeza extemporânea? Arroubos de grandeza vistos como gargarejos de pequenez? Confusão entre Parlamento Europeu e Governo de Portugal? Cedência a cantos de sereias mediáticas embalados pela impopularidade governativa? Maior passo que a passada? Tudo pode ter contribuído. Mas excluo as explicações vis de traição, sabotagem interna, oportunismo ou falta de solidariedade. Não. Seguro não se pode queixar de um jogo que foi sempre limpo, onde jamais alguém conspirou com o adversário, onde todos se empenharam. Muitos, como eu, participaram na campanha mesmo sem convite nem apelo, por dever. Ajudaram como puderam e porventura mais que o solicitado.

No Sábado, a surpresa: Seguro recusa discutir a convocação de congresso; tira da cartola a bicefalia, com eleições primárias para um cargo de futuro incerto, garantidamente gerador de instabilidade, o de candidato a primeiro-ministro. Sem regulamento que o suporte, nem calendário que o materialize. Lá fora as pessoas perguntarão: para quê dois, em vez de um só, designado por sufrágio universal de militantes? Dois galos no mesmo poleiro cantarão afinados? Por que razão Seguro propõe agora o que recusou há dois anos? Quem define, aceita, inscreve os simpatizantes eleitores? Como se previne a chapelada das inscrições a granel? Faltando 14 meses para legislativas, queimar meio ano num processo inovador mas desconhecido, deixando o governo a apascentar cabras em terreno de cultivo, não será o passaporte para uma derrota? Responder a uma sociedade civil, que só deseja Passos e companhia pela borda fora, com procedimentos inexperimentados, complexos, duvidosos e demorados, não será aumentar o desânimo?

Três anos deste governo deixaram o país pior: maior dívida externa com encargos que até Bill Clinton nos aconselha a reformular, mais desemprego, debandada de activos qualificados, classe média destruída ou atemorizada, desigualdades alargadas, tecido económico na penúria, sem acesso a investimento produtivo, com inovação limitada a ilhas de progresso. Estes são os problemas que a sociedade espera o PS possa vencer. A candidatura de Costa tem contra ela um manifesto excesso de expectativas, extravasando em muito os eleitores socialistas. Se um plebiscito nacional lhe desse, hoje, uma retumbante vitória, ainda tinha que vencer desafios imensos: transferir da sociedade para o partido esta onda de esperança e preparar o PS para liderar a sociedade. Acresce agora um terceiro e mais difícil: limpar a areia que Seguro lhe coloca na engrenagem. Na dele e na dos que dele esperam a recuperação do País.

Deputado cessante ao Parlamento Europeu pelo Partido Socialista

 

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