António Costa e “o sistema”

Seja no expediente de transferir recursos nacionais para a capital, seja no conúbio com o futebol, Costa mostra que é um político “do sistema”.

1. Perfizeram-se ontem quatro anos sobre o pedido de resgate, quatro anos de dificuldade, provação e esforço. Foi o terceiro resgate em democracia, o que aponta para que os responsáveis políticos e a sociedade como um todo não souberam tirar ensinamentos da experiência dos dois resgates anteriores.

Desta feita, o sacrifício exigido foi de tal ordem, o contexto externo existente é de tanta incerteza e o grau de consciência cívica da população é tão mais elevado que seria imperdoável e inexplicável que não fôssemos capazes de tirar lições e ilações do terceiro resgate.

Curiosamente, tanto os críticos mais ferozes como os apoiantes mais fervorosos do Governo tendem a caracterizar este quatro anos como quase “revolucionários”. Os opositores mais aguerridos consideram que foi seguida (com responsabilidades nacionais e europeias) uma linha radical, apodada de neoliberal, assente na ideia de austeridade expansionista, destruidora da economia e do equilíbrio social, que terá alterado muito significativamente o tecido “societal” português. Os defensores mais empenhados da coligação sustentam que houve uma mudança estrutural da economia e da cultura económico-social, com uma profunda renovação da sociedade e dos seus hábitos. Creio que nem uns nem outros terão razão e que a simples alusão a um período de mudança revolucionária ou radical é exagero retórico. Muita coisa correu bem, alguma coisa correu mal, mesmo mal, muita coisa podia ter corrido melhor. Esse bem e esse mal e esse poder correr melhor aconteceu, todo ele, num quadro de apertadíssimo condicionamento externo, que muitas vezes impediu que se pudesse fazer diferente.

Mas seja como for, volto ao ponto. Restaurada a credibilidade do país, corrigidos ou postos em trajecto de correcção alguns dos nossos grandes desequilíbrios, havendo ainda muito para fazer, há algo que ninguém deve esquecer: não queremos voltar a passar por uma experiência assim. Na nossa política financeira, na nossa política económica, na nossa política social, educativa e de saúde, na justiça e na defesa, na nossa política europeia, na nossa política territorial, na nossa política “política” temos de integrar o balanço destes anos e dos erros que nos obrigaram a pedir um resgate. Não enveredo pela narrativa revolucionária das leituras radicais, sejam críticas, sejam apologéticas. Mas tenho por seguro que as coisas políticas não podem ficar iguais, não podem voltar ao que foram antes do programa de ajustamento. O grande desafio das próximas eleições é justamente ser capaz de garantir que não vamos voltar a ter de passar por um tempo destes; que não vão voltar os anos pesados e duros. Não houve revolução, nem se exige revolução, mas não podemos retornar à política do sistema…

 

2. Com este horizonte, preocupa-me de sobremaneira, para usar uma linguagem ecológica, a pegada política de António Costa. Não, não me refiro aos anos do guterrismo. Não, não me reporto aos anos do socratismo. Apesar de António Costa ter sido um elemento proeminente nesses dois períodos e, em particular, no segundo, admitia que ele – mesmo sem ter feito um mea culpa – tivesse aprendido e interiorizado as lições da bancarrota e do consecutivo resgate. Quando falo em pegada política, falo em pegada fresca, daquela em que ainda se vêem os relevos e os feitios da sola do sapato. Refiro-me, pois, ao tempo em que foi presidente da Câmara de Lisboa e, em especial, aos dois últimos anos, em que as aprendizagens do resgate são já óbvias e a sua ascensão à liderança do PS era verosímil ou até já estava concretizada. E tomo dois exemplos singulares, altamente reveladores e altamente preocupantes.

 

3. O primeiro diz respeito à célebre taxa aeroportuária de entrada – ou, mais exactamente, de aterragem – na cidade. A taxa, de ressaibo medieval, sujeita ao conhecido princípio fiscal “quem aterra, paga”, era já de si controversa, pois Lisboa é uma enorme beneficiária directa daquela infra-estrutura. E era controversa, porque, conjugada com o aumento de uma série de taxas no concelho, mostrava que afinal a agressividade tributária não era um monopólio do Governo central. Costa criticava o aumento de impostos, mas não hesita em agravar taxas. Quando julgávamos que o rol de contradições estava arrumado, eis que Costa tira um expediente da cartola. Afinal, quem vai suportar a taxa já não são os passageiros que aterram, mas é a empresa concessionária dos aeroportos em Portugal (ANA). Pois bem, a taxa municipal criada por Costa vai ser paga por uma empresa que, através de uma concessão de carácter público, gere as infra-estruturas aeroportuárias do continente. Ou seja, e na prática, todos os passageiros que aterrem em Portugal – seja no Porto ou seja em Faro – vão acabar por pagar a taxa municipal de Lisboa. Se entretanto nos lembrarmos que a única ideia que se conhece do PS de António Costa é a defesa intransigente da descentralização e até da regionalização, estamos conversados. O líder do PS é a favor da descentralização, mas propõe que os cidadãos de todo o país – ou de outras partes do país – acabem a pagar uma taxa concelhia privativa do município de Lisboa.

 

4. Esta agressividade fiscal – tão estranha em quem tanto fustiga a austeridade – não casa nem joga, porém, com o laxismo tributário que mostra relativamente a um clube de futebol. Costa cria taxas e aumenta taxas em Lisboa, põe Portugal inteiro a financiar o seu concelho e termina finalmente a isentar um clube de futebol que por ano paga mais ao seu treinador do que deveria em taxas ao município, se elas lhe fossem liquidadas. É esta a pegada política de António Costa. Afinal, seja no expediente de transferir recursos nacionais para a capital, seja no conúbio com o futebol, Costa mostra que é um político que não aprendeu nada com o resgate. É um político “do sistema”. Creio que nesta fase da nossa vida, precisamos de mais, precisamos de melhor.

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