António Costa e o milagre da transfiguração da esquerda

A moção de Soares dos anos 80, "Um novo rumo para o PS", previa uma aliança com o PSD.

Os partidos com representação parlamentar dedicaram-se por estes dias a um dos divertimentos que mais apreciam, melhor praticam e mais gozo lhes dá: a dissimulação. Nesse jogo, tanto vale a insinuação como a verdade, o altruísmo ou o instinto de sobrevivência, a sinceridade ou a hipocrisia. O pano de fundo de um parlamento sem maioria absoluta dá-lhes azo a devaneios, torna os partidos da Coligação em apóstolos do consenso e transfigura de tal forma o PCP e o Bloco que, de um momento para outro, parecem ter deixado de ser os mais ferozes inimigos do PS para se tornarem pombas prontas a cair no colo de António Costa.

O que por estes dias vai passando nas televisões e nos jornais vale por isso mais pela encenação do que pela substância, até porque todos sabemos como vão acabar as manobras de diversão: ou os partidos da coligação e o PS se entendem para se criar condições mínimas de governabilidade, ou o país está condenado a viver um hiato de turbulência e incerteza durante os próximos meses.

Não se trata de uma fatalidade, apenas de uma leitura do que foi a campanha eleitoral e dos programas que cada um dos partidos apresentou aos cidadãos. O cumprimento desses programas não é apenas uma responsabilidade de quem vai governar, mas também de quem fica na oposição, e basta ler na diagonal o que o Bloco e o PCP propuseram para se perceber que este suposto diálogo com o PS soa a falso. Claro que ninguém fala disso, por óbvio incómodo, até porque é mais sonante dizer que “a esquerda ganhou” as eleições ou que o país votou contra a “austeridade”. Só que reduzir a “esquerda” a uma fórmula rígida é um absurdo que desconsidera as diferenças de programas e a história dos partidos. Alguém acredita que o PS teria 32,5% dos votos se os seus eleitores soubessem que o partido iria governar em aliança com o PCP ou o Bloco? E os eleitores do PCP manteriam a sua fidelidade se soubessem que o partido abdicaria da renegociação da dívida? 

O governo de uma maioria de esquerda é um projecto do desejo, não uma expressão mensurável da realidade política do país. O PS sabe disso e sabe também que a sua posição de ponte entre as alas da direita e da esquerda tanto lhe confere uma confortável posição de poder como lhe impõe um risco que, em última instância, pode estilhaçar a sua identidade e a sua força. Num atestado perfeito dos dilemas com que se debate a social-democracia europeia, os seus militantes hesitam entre assumir regras básicas de governação que partilham com o programa da direita (o controlo orçamental acima de todas) e um apelo para o regresso ao progressismo e ao frentismo que fazem parte do imaginário histórico da esquerda. Muito mais do que no congresso, o PS vai viver nas próximas semanas o seu momento clarificador.

Até agora, António Costa está a saber usar a sua experiência política para gerir as opções com que o PS se confronta. Para começar, não podia fazer orelhas moucas ao canto da sereia que o Bloco e o PCP lhe entoam sob pena de se sujeitar ao prolongamento dos ataques sobre a sua suposta rendição à direita. Por isso foi ao seu encontro. Costa certamente não previa encontrar na Soeiro Pereira Gomes o que terá provavelmente sido a maior abertura negocial do PCP em 40 anos de regime democrático, permitindo-lhe regressar com a ilusão de que o PCP saiu das catacumbas e está disposto a assumir a relação com o “arco da governação” que o eurocomunismo estabeleceu há já 40 anos. A verdade, porém, é que se Jerónimo de Sousa não contestou os consensos maioritários da sociedade portuguesa, sejam o euro, a participação empenhada na União Europeia ou o respeito, embora abstracto, do Tratado Orçamental, também ninguém o ouviu dizer que está disposto a engolir sapos para os aceitar.

Para António Costa, o apelo da esquerda através de uma provável (e, sublinhe-se, ainda remota) reconversão programática tem o mérito de obrigar Passos e Portas a acelerarem o passo e a assumirem que lhes cabe o “ónus” de criar condições de governabilidade. O PS tornou-se assim a dama mais disputada do baile. O patinho feio derrotado nas eleições é agora um belo cisne que, de repente e por conveniência, todos querem. O acordo de Governo entre os partidos da coligação recorreu a encantos de sedução que encaixam bem no programa socialista – como a aposta no crescimento, o investimento na Ciência, o aumento do poder de compra, a “defesa e reforço do Estado Social” ou a “promoção da competitividade da economia”. Mas Costa tem razão: Passos e Portas é que têm de dizer que cartas oferecem para que o PS entre no jogo da governabilidade.

Dizendo que Deus é bom mas o diabo também não é mau, António Costa vai navegando à bolina, mesmo sabendo o final do filme. Se no futebol são onze contra onze e no final ganha a Alemanha, na formação de governos é a esquerda contra a direita e no final quem fica no poder é o PSD, o CDS e o PS. E não apenas por causa da influência do árbitro Cavaco Silva, que para evitar entusiasmos à esquerda tratou de divulgar um caderno de encargos ao próximo governo que inclui, por exemplo, a NATO. Quem governar a seguir pode virar a página da austeridade, mas não pode pegar num livro novo para contar uma história diferente. Para se enquadrar nessa narrativa, a esquerda à esquerda do PS teria de sofrer um cataclismo programático. Seria forçada a suspender os desejos de aumentar salários, de devolver pensões cortadas, de aumentar o investimento público para criar emprego, de reverter privatizações, de concordar com o défice abaixo dos 3%...

Face às circunstâncias, tarde ou cedo o PS estará a negociar acordos de incidência parlamentar com a coligação – de fora está, e bem, um acordo de governo, que colocaria no poder uma força com 70% dos votos. Claro que não pode impor o seu programa a quem vai mandar, mas sobram-lhe ainda assim imensas condições para ficar bem na fotografia. Portugal vive bem sem cortes sociais cegos como os que foram feitos, precisa de uma voz menos submissa na Europa, necessita de apostar na Cultura e na Ciência, pode prescindir das aventuras ideológicas na liberdade de escolha das escolas ou de taxas moderadoras nos abortos. O regresso da política ao Parlamento só é um mal se os deputados não estiverem à altura das suas responsabilidades.  

Há, assim, um enorme campo de possibilidades para o PS influenciar com uma marca da esquerda um governo minoritário da direita e essa pode ser a redenção de Costa após o desastre eleitoral. Mas para o conseguir, tem de passar do bluff para assumir quem é e para onde vai. Para um partido com o seu património e a sua história, a procura da identidade não é de resto uma tarefa difícil. Basta recordar a moção “Um novo rumo para o PS” apresentada por Mário Soares em 1980, que previa uma aliança com o PSD. A menos que o PCP e o Bloco abdiquem do seu programa e entrem de alma limpa na defesa do projecto europeu, do rigor orçamental e de uma economia social de mercado, o PS está condenado a ser o que sempre foi. E o Bloco e o PCP também.  

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